POESIAS SURREALISTAS (De 1 a 7)

PAPOULA

Na minha carne alaranjada se mexendo, fico a olhar os meus dedos meio transparentes pela claridade da lamparina, onde negras mariposas-querubins, descem e sapecam as delicadas asas, na luz de um olho só.

Escamas crescem, em minha pele de suores azuis, enquanto os meus pêlos dos braços, como formigas, caminham-me... A minha cabeça com gosto de ferrugem, escorrega-se pela minha garganta adentro..., depois é regurgitada com uma outra face em vida para a luz que me espera, em vermelhidão de minha calma.

Os dentes enormes me avisam que não me conheço! Corpo longo, soltando sopros de fumaça, eu estou enrodilhado em cima da mesa...

Metade cobra, um pouco de metal, fico assim meio estátua...

Joinville, Janeiro de 1984.

Ps. Hipócrates foi um dos primeiros a descrever seus efeitos medicinais contra diversas enfermidades. Há quem defenda que mais tarde, um médico grego em Roma, padronizou a preparação do ópio com uma fórmula (o mitridato) e a receitava aos gladiadores. O uso do ópio difundiu-se pela Europa no início do século XVI, mas sofreu forte combate quando a Igreja Católica começou a controlar os remédios. Foi por essa época que Paracelso, o famoso médico e alquimista suíço, elaborou um concentrado de suco de papoula - o láudano, que teria o poder de curar muitas doenças e até de rejuvenescer. A disseminação desta crença levou à popularização do seu uso em todo o mundo ocidental. Com o tempo e com a expansão das rotas comerciais, o ópio acabou por se tornar uma droga universal.

MEU FUNERAL

Tanto é o aparato e o encanto,

Que deste manto fino e branco,

Neste cheiro de tôscas flores,

Vêm as lembranças dos amores

Que tive na vida,

Em parte dividida.

Mulher que habita o meu ser,

Homem que eu faço parecer.

Sim, porque o verdadeiro eu,

Aquele que aqui não morreu,

Ainda em mim está presente

Observando toda essa gente.

Que aqui estão, mais para cochichar

Sem compaixão, neste falso adorar

De participação, do que se comover

Com a situação, sem se arrepender.

E para melhorar a minha satisfação...

Para todos só existe uma solução!

Deixar a vida a própria sorte

Da inevitável dona "Morte".

Escondendo-se, querendo ou não,

Ela um dia virá pegar na sua mão.

De humilde e honesto eles não tem nada,

Também estão com a passagem marcada.

Pela lei: Quem o mal faz aqui sempre paga!

Lembrando que: No inferno não falta vaga.

Para o infinito do céu eu vou sim,

Não adianta jogar praga em mim.

Com divinos anjos eu estarei,

Mesmo que muito na vida errei.

Estrelas e luas

Dançando nuas,

A cintilar e rodopiar

Virão a me saudar.

Sei quem me amava ou odiava,

Só pela conversa que escutava.

Ficam as saudades para os camaradas

E o desprezo para os de caras lavadas.

Para os bons,

Deixo o desejo de uma longa vida.

Para os maus,

Deixo a carga de uma morte sofrida.

Hoje, a mortalha fria

Cobre a minha alegria

Que tento segurar,

Para não gargalhar

De toda essa palhaçada,

Nesta hora engraçada.

Muitas caras nojentas

E velas fedorentas,

Iluminando o frio caixão

Do defunto em exposição.

Vejo olhos e orelhas tortas

Bôcas e bundas mortas.

Lágrimas e os narizes

Das velhas com varizes.

Crianças sem educação,

Pulando e sujando o chão.

Até cachorro apareceu

Para ver quem morreu!

Eu apenas quero dentro de mim

O puro perfume da flôr do jasmim.

Não me joguem pedras nem barro,

Pois não sou um vaso nem jarro...

Em uma sala iluminada me reservem,

Que no álcool vocês me conservem...

Quero que bebam e dancem até a exaustão,

Ao som de rock, jazz e blues em profusão.

Assim os papa defuntos chorões,

Não teriam motivos ou emoções,

Nem cadeiras para sentar...

Só ficariam a contemplar,

Com muita razão e curiosidade,

Essa minha eterna indignidade

Por esta lúgubre e imensa falsidade,

De quem nunca me amou de verdade.

UMA ALMA ESCRITA EM PENA

Daqueles dias podres que a mim levaram,

Fui a carne e a comida em decomposição;

E das negras chuvas que me desaguaram,

Fui à mágoa da tinta em plena profusão...

Do meu ardor bandido, com uma moeda falsa,

Nada de mim eles compraram naquelas camas...

Apenas ouço o sôfrego som do violino em chamas,

Queimando a alma em vida daquela fúnebre valsa.

Como no apagar de uma negra e enfeitiçada vela,

Dentro da noite somos bichos e ninguém se revela.

Em casa sepultei a minha sombra...,

Arranquei a pele do meu pensamento,

Desossei a raiva que me assombra...,

Entrei em concha no meu purgamento.

Chamei os lírios de covardes flores,

Por não alcançar a sua bela alvura;

Talvez por perder os meus amores,

Ao não dar-lhes merecida candura.

Rasguei os livros das minhas dores,

Senti a minha alma sair dali impura.

Alcancei nú o ébrio céu paramentado,

Bebi seu ócio e o enfermo dia perdido.

Um ser de toda a fome livre mas, acorrentado,

Num sol sem brilho, por não ser em si merecido,

Apenas chamusquei as minhas asas do pecado;

Ele não foi forte o suficiente para me matar,

Para um outro lugar eu seria dali transportado,

Meus olhos em lesmas, lágrimas lentas a vazar.

Meio cobra eu agora acordei em um calabouço,

E no meu corpo a sombra ressuscitada se desdobrava,

Nesta pouca luz fria em que só eu apenas me ouço...

Serpenteando-me, o cheiro da morte que a mim sobejava,

Deu de ombros e disse: Pois, uma alma que pena em vida,

Aqui não me serve, só faz aumentar essa sua grande ferida!

E mesmo que eu dali não saísse feliz da minha não morte,

Vivo os dias infelizes em rabiscos no papel da minha sorte.

SEXTA METAMORFOSE

Do ar que eu respiro pesado e tão morto,

Esguichei em pingos o meu veneno fatal,

E suguei num momento de agonia absorto,

As luzes refletidas neste meu mapa carnal.

Ainda que ao depender dele eu não respirasse,

Comeria essa minha própria existência latente...

Depois eu cuspiria a ferida de quem me matasse,

Que ao cair neste chão tão vazio, viraria semente.

Na madeira oca da minha textura eu me aninho,

Trançando-me em cipós nesta estrangulada mata.

Aqui, vejo e ouço os pios de um cego passarinho,

Que mal se formou, lá onde o seu futuro o retrata.

Onde foram jogar os vômitos das vossas displicências?!

Se for nesta madeira sã cortada, o vil inimigo te matará.

Sentirão os ascos dessas rígidas e inóspitas resistências,

Encravando em ti estacas, qual não muito longe tardará.

Na água, me levo na correnteza desse obscuro,

Em lugares que de mim, imploram por um abrigo.

O bem e mal que tento segurar, mas não curo;

É vida, é preciosa, também é um grande perigo...

E podem se revoltar absolutas nestas memórias,

Que se passaram na antiguidade do meu mundo;

Onde a sorte a cada passo afundava em glórias,

Transformando-a em um lago negro e profundo.

Na massa que meu espaço ocupa e eu piso sempre,

Um dia fui a areia, que se esvaiu para outro lugar;

Bondoso homem, que por lá ficou doente da mente,

No andar entre profundas rachaduras do seu penar.

Uma elegia a tão grande e firme terra produtiva,

Que se desdobra nas suas constantes convulsões,

Avisando a todos os seus agressores: Estou viva!

Mesmo destruída, em seus lamentos de emoções...

E do fogo, que pensávamos na chama que fere todo ser;

Em seu esplendor de luminosidades, e na sua rica magia...

Esquenta a tua carne, mas, depois faz teu eterno sofrer;

Ao te envolver na culpa de quem o mal a um outro fazia.

Queimar assim, tenta-se desmanchar esse grande pecado,

Carregando penitência á fogueira, nesta sôfrega clemência;

Mas a bruxa que sou tem poderes, não incinera ao seu lado,

Somente danço leve, na sua vermelha luz de pura elegância.

No metal que derrete dentro das minhas veias e se conduz,

Vejo esses grandes valores nas compras desse tal submundo,

Que como a ganância, serão os mesmos a apagar minha luz,

Pelo dourado e ermo humano, em maldade do ardor profundo...

Como a procurar a vã felicidade sem ver o arrependimento do céu,

Deito-me em livre vontade nesta minha nova casa aqui construída,

A paz dos elementos se fundiu no fogo da cruz do meu mausoléu,

Na terra fui sumindo, me desagüei, e no ar me evaporei desta vida.

MÚMIAS

No dia em que eu morri e com o meu consentimento,

Dentro de mim eu já sabia que mais nada encontraria.

Na esperança de uma bela face eterna eu permaneceria,

Mas, o tempo em sua curiosidade virou saqueamento...

Uma caveira carnada de um verniz do remoto passado.

Uma figura que descansava em paz na sua tumba fria.

Sem olhos para ver quem de pé realmente me aplaudia,

No futuro eu chegava, era espanto no corpo desenrolado.

O meu cérebro já fora de mim, nem imaginava as emoções,

Em que num templo não respeitado, passei a ser admirado.

Sentimentos eu não tinha, pois o meu coração foi arrancado,

Meus órgãos internos foram todos removidos em operações.

Dentro oco fiquei, somente com alguns panos fui preenchido.

O meu aspecto de um corpo queimado não era a fiel realidade,

Esse semblante era de quem não viu minha forma em verdade,

Em soluções químicas que ainda são segredos eu fui embebido...

Embalsamaram-me com muito cuidado por ser um ente querido.

Rodearam-me com os meus enfeites preferidos em jóias e ouro,

Esperando que as usasse em reencarnação, um futuro vindouro?

Entre todos os rituais do passado, era um elegante fim prometido.

Do meu eterno descanso me acordaram, minhas jóias roubaram.

Os meus poderes que a mim foram designados em minha tumba,

Deixaram de ser segredos para virar uma atração que violaram,

Para ganhar muito dinheiro, na luz da fama de uma mente imunda.

Porque em minha casa, no lugar por merecimento não me deixariam?

Mesmo que em mim a curiosidade da história tivesse me analisada,

Tirassem fotos, de mim fizessem uma cópia, eu estaria descansada!

Que adianta falsas promessas de que os tesouros se conservariam,

Se de lá me tiraram? Estou nesse caixão de vidro feito uma aberração.

Hoje não encontro mais a atitude de que o corpo deve ser respeitado,

Não há mais o encanto da dignidade, para o mundo eu sou mostrado.

Acham que minha descoberta foi uma glória? Foi uma covarde invasão.

Isso na verdade é uma imoralidade que não tem fundamento e razão.

Seria uma desonra para a atualidade devolver-me para meu lindo lar?

Se conseguissem fazer com que o meu corpo pudesse para lá voltar,

Eu com certeza agradeceria, e desse mundo tiraria a minha maldição.

DELÍRIOS DO AMANHÃ

Dentro de mim o escorrer lento,

Em fluxo da demência do tempo.

No parto do vento transparente,

Fui o rebento da morte vivente.

Da triste pele que suada de lamentos,

Nasci em nervos versos já aflorados.

Surgem-me pingos em exclamações,

Destes episódios em descontruções.

Em delírios do amanhã!

Toda morte não será vã!...

Salvar toda a mente sã!

Em delírios do amanhã!...

Onde dentro de mim,

Este louco serafim,

Agita-se tanto assim.

Que na oca consciência,

Da minha rasgada existência

Demente eu ainda mais ficava,

Sem saber a alma que ocupava.

Costurei-a então na minha essência.

Formou-se uma roupa de carne lá dentro,

Logo serei eu, portanto, um novo elemento,

Uma trova que em mim se destrava em voz de trovão,

Numa página revirada do falecimento desta crua visão,

Sentia chegar ao meu corpo, a maligna transformação.

As minhas costas se abriram em pavor,

Nos meus dedos duras unhas cresciam,

E as penas das almas em mim nasciam.

Numa metamorfose sofrida, mas sem dor,

Nasceram-me negras asas de um condor.

Era agora uma ave lúgubre e enorme da mutação.

Tinha eu os grandes olhos da fome da ingratidão,

Que derramaram com o sangue impuro de amor.

Dali em diante seria eu um assassino em missão,

Voaria livre no meu dever das horas desse horror.

Em cada montanha de carne que eu ali construía,

Tinha mortos da depravação, na louca hipocrisia.

Ceifava em abundância os discípulos da ganância,

Levava a todos que a forma torpe da vil elegância,

Enganou e usou nos poderes do poço da arrogância.

Após muito tempo eu entrei em uma caverna infinita,

Que a mim foi destinada depois do meu cumprimento.

De lá eu escutava aquelas almas que em lamento grita,

Pedindo o perdão que jamais virá do justo firmamento.

Colando-me na parede me desmanchei em úmido negro,

Meus fortes ossos ficarão montados na vigilância eterna.

Meu segredo e meus olhos vermelhos como rubi em fogo

Foram as únicas luzes que ficaram aqui dentro da caverna.

Minhas penas no chão aguardam o condor ser ressuscitado...

Fechei-me nesta reclusa casa e esperarei pelo novo chamado,

Onde uma nova colheita de almas podres, tomará conta o diabo.

Sou seu mensageiro alado e levarei da terra quem for condenado.

CATEDRAIS

Vim das pedras que por sua resistência me edificaram,

Que em si tão frias, se montam da porta até os altares.

Sou a liga da massa em elementos que me costuraram,

Com a areia do tempo compactada de diversos lugares.

Sou as enormes torres onde busco o firmamento em alturas,

Nos meus mais variados e monumentais artísticos pilares,

Desde o meu firme fundamento nos túneis das sepulturas.

As lages da minha entrada gastaram muitos passos andados,

Desde o humilde cristão, até aquele ser que foi o vil pecador.

O meu frontispício da remissão já desmancha os condenados,

Sem ter adentrado em minha cúpula que o converterá em dor.

Sou à entrada do perdão em delírio que curará o vício teu,

Engolindo em minha enorme boca da razão, quem me procura.

Sou o acerto da verdade e da mentira do crédulo e do ateu.

Tenho a primazia da eloqüência em sua sanidade e na loucura.

Na minha abóbada em pintura celeste, guardo os ancestrais

Do teu povo, que em mim lá buscavam a glória da salvação,

E me visitavam com túnicas decoradas, como meus vitrais,

Em comportamento litúrgico de lindas orações em comunhão.

O meu som ecoava na admiração do imenso órgão em sinfonia,

Que na fértil imaginação do crente, os vários anjos ali cantavam.

É um respeito em magnitude que em muitos lugares não se via,

Grandes fervores de fé em sintonia com Jesus, assim louvavam.

Pelos meus afrescos és vigiado, acompanhado a todo o momento,

Pelos meus serafins de mármores e estátuas dos meus santos de luz,

Que a ti poderão proteger se tu lhes deres o valor em agradecimento.

Foram esculpidos para acolherem seguidores que minha fé conduz.

O arrepio que em tua pele percorre quando me deixas em ti entrar,

É a forma com que eu levo o pecado que está saindo da tua alma,

Em todas as criaturas que o mal insiste ficar, sem você o convidar;

Elevo-te em bons pensamentos, limpo o teu interior que se acalma.

Sou eu o espírito das catedrais e tenho uma grandiosa missão,

Que a mim foi designada por um mandamento divino especial.

Sou o corpo da cristandade, sou a voz da irmandade na oração,

Através dos tempos seculares lhe trarei o bem, retirando teu mal.

Vim de décadas muito distantes e disponho a minha força e vontade,

Aos que me levantaram em sacrifícios nessa estrutural obra grandiosa.

Vou com meu manto de rica cultura em ornamentos, mas sem vaidade,

Viver os meus anos, enquanto for durar a minha eternidade vitoriosa.

Setedados
Enviado por Setedados em 02/06/2012
Código do texto: T3701865
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