O abandono da morta...
E aquela mesma madrugada fria veste-se de sonhos
e beija-me o rosto ainda adormecido.
Convida-me a dançar e tento alinhar os meus cabelos,
mas alinhá-los é carne e não é sonho e é tão desimportante
e olho à janela e o bosque é iluminado à luz da Lua
Dorme o meu amorzinho e jamais me conhecerá
Porque és ninho de passarinho da alma minha e do repouso meu.
E a inquietude da madrugada veste-se tão irresistívelmente
e une-se à minha e chama-me. E chama-me e beija-me agora a boca
e sopra-me segredos meus em minha boca e que não te posso contar.
Chorarias, meu anjo bom. Chorarias.
Teus olhos foram feitos apenas para a minha contemplação
e são janelas verdes de cortinas frescas que adormecem agora.
Cedo então à sua dança e à morte da outra que dorme ao teu lado
e a madrugada sempre veste-se de sonhos e de silêncio. Encantadora.
Ainda menina e já eu e ela num dueto quase perfeito
se não fosse este silêncio que apenas não cala o que escuto
em gritos e para dentro de mim.
Se eu pudesse, meu anjinho, da minha boca a ti
sairia apenas ternura e estaria sempre disponível aos teus beijos
que tocam-me os lábio e a alma acalma-me
tal a mais fina seda e nem mereço e que nem sempre desejo.
Este meu mau feitio e esta madrugada que chama-me e gosto tanto
e esta prazerosa sensação de estar-se só e poder ser outra.
A que enxerga-se melhor na madrugada do nada que tudo é
e do que nada sou e aprecio o meu nada e vazio bem de perto.
Esvazio-me de tudo o que é vivo meu e move-se no mundo
e sinto-me repleta de uma vida só, quieta e apenas minha.
Vem à mim a madrugada e esta vida é apenas minha
em que nada eu a permito e apenas à mim
tal os brinquedos meus de outrora que pensava eu ganharem vida
enquanto eu dormia e os vijiava a fazer de contas que dormia
a segurar nas mãozinhas do soldadinho de chumbo
que portava-se frio ao atravessar a vida apenas dos vivos
mas não na minha certeza das risadas que ele poderia arrancar-me
e na minha expectaiva de apanhá-los todos de surpresa
n'alguma noite quando mais distraídos e felizes.
Mas tão perspicazes os brinquedinhos meus e que sabiam tudo de mim
e inclusive do meu sono leve e dos meus muitos sonhos de quimera.
Sinto saudades dos meus brinquedinhos que ganhavam vida com a madrugada
e eu queria tanto fazer parte com todos eles e brincar e ser feliz.
Talvez em nem voltasse mais, de certo.
Esta mesma vida que ganho eu quando novamente a mesma madrugada
beija-me e convida-me a dançar e sopra-me segredos meus.
Eu nunca consegui surpreender os meus brinquedos no seu momento vida,
mas ainda espreito-os quando dou alguns passinhos para trás.
E assim como eles não poderia eu deixar-te surpreender-me à mim, meu amorzinho,
nas vidas tantas que sinto e vivo se seguro nas mãos da madrugada.
E ponho-me a dançar, a sorrir, a sonhar e acompanhada apenas por ela
e uma alegria invade-me e nem penso em retornar.
Apenas quando lembro-me de ti, amor meu
e dos meus dois passarinhos que começam a cantar para mim.
Karla Mello
Março/2012