GIROSCÓPIOS / RENOVOS DO MAR

GIROSCÓPIOS I (2009)

Ela sobe a escada do terraço

e, de repente, transforma-se o jardim:

de rosa e ouro ele é coberto assim,

no momento em que sobe mais um passo.

Será o sol que se põe no seu espaço

e assim transforma o azul do céu, enfim?

Ou realmente, sorrindo para mim,

mudou ela o entardecer, antes tão baço,

em um caldo de brilho inesperado,

que se espalhou por cada interstício

desse mormaço, que esvaziava minha paixão?

Só sei mesmo desse tempo deflagrado

pelo seu rosto, afastando todo o vício

e me enchendo de surpresa o coração...

GIROSCÓPIOS II (21 NOV 11)

Só observo das frestas da janela,

ainda semi-oculto no postigo,

nesse temor incerto do perigo

de que perceba que estou a vê-la

e que não queira que possa percebê-la,

na execução do encantamento antigo

e que o jardim não mais tenha esse abrigo,

mar de magia transposto em caravela,

essa panóplia que ao entorno estende,

película oriental que prende o Sol,

brota somente da ponta de seus dedos

e se o ritual às mãos não mais se prende,

ao descobrir-se luz de meu farol,

se fanarão alguns de seus segredos?...

GIROSCÓPIOS III

Então me escondo, meu olhar trancado

pelos caixilhos do postigo, assim,

e só percebo seu toque carmesim

quando desprende o véu revolto, alado.

E tal chuvisco pelos ares transportado

traz mais que chuva para seu jardim:

magia doce se transmite a mim

e sinto o cérebro também por ela aguado.

E o sol de ouro que desce nessa água,

no anel quebrado, multicor, do arco-íris,

ao longo desses jatos refratado,

lavando em cada flor a poeira e a mágoa,

para depois, se tais canteiros mires,

esse ouro vejas nos caules encerrado.

GIROSCÓPIOS IV

E quanto a mim, que sou feito de barro

e só me encanto no zoar do giroscópio,

boneco de madeira, qual Pinóquio,

vou-me tornando, no fluir que agarro

e, pouco a pouco, nesse mesmo carro,

em seguimento ao sol do microscópio,

em nostalgia ou em ilusão de ópio,

a nova fase do milagre eu narro.

É como então que dos dedos de madeira

brotassem ramos com igual fertilidade

e nas suas pontas se abotoassem flores...

Mas não tenho raízes; e a derradeira

gota espargida, em borrifos de saudade,

me traz à vida real dos dissabores.

GIROSCÓPIOS V

Assim anseio que o tempo permaneça

a refrescar o jardim e o coração

e que essa manga arrastada pelo chão

à rega de minha alma não esqueça;

que o sol repintalgado ela não meça,

que vá catar mais farrapos de ilusão

e que os esparja em giros de emoção

nessa rede de filó que os ares teça;

assim eu mesmo me abeberarei,

escondido no gradil das venezianas,

qual planta murcha, perdida a clorofila;

e para novo amor eu brotarei,

mudo e silente nessas flores-chamas,

querendo mais crescer para atingi-la.

GIROSCÓPIOS VI

E me percebo em giro permanente,

ao redor da regadora onipotente,

que se fez no jardim hoje presente,

enquanto eu a seu redor orbito.

E para seu olhar então me incito,

em cada lágrima sentindo-me bendito,

em cada ausência um pouco mais aflito,

em cada mágoa um pouco mais ardente.

E sinto que esse sol fez-se frescor,

para os caminhos da noite confinado,

sem que o solo mais resseque, sem piedade.

Completado o encantamento de valor,

eu sou gavinha pelas grades enroscado,

no antecipar contínuo da saudade!

RENOVOS DO MAR I (22 NOV 11)

Em minha fazenda plantei pés de cangurus,

que roubei de um zoológico em Berlim.

A neve fui buscar em Bombaim

e fiz sandálias para meus passos nus.

Fui na noite buscar réstias de luz,

durante a aurora boreal de Parvaim

e nas praias cintilantes de Cochim

achei os restos da verdadeira cruz.

E fui colher coral nos Himalaias,

após peixes pescar no Kalahari.

De bicicleta percorri o Polo Sul

e entre os papuas distribuí minhas alfaias.

Nas catacumbas habitei de Bali,

revestido de mil peles em Mossul!...

RENOVOS DO MAR II

O Amazonas, no dorso de elefantes,

eu percorri, nadando sobre o rio.

De mil cilindros encontrei o fio,

da eternidade contei os mil instantes.

Aos bosquímanos vendi os meus brilhantes,

na castidade dos animais em cio.

Gravei dos ursos polares cada pio

e fui voar nos tapetes necromantes.

Nas florestas de Tóquio fui caçar

e me banhei nos desertos de Gobi.

No Karakorum deixei o meu cantar

e aos Andes romaria já cumpri.

Nos picos de Ararat eu fui nadar

e sob os restos da Arca me encolhi...

RENOVOS DO MAR III

Em Nova Iorque fui comprar pinguins

para meu festival de ação de graças.

Destinei meus alfarrábios às suas traças

e alimentei-me com bolos de jasmins.

Voei de Portugal até os confins,

dialoguei com mirandeses, em suas praças.

Cortei fatias solitárias de desgraças,

descendo de canoa o Parintins.

Cativo eu fui dos velhos mandarins

que construíram seus pagodes no Arizona

e convivi na França com os mongóis,

cruzando o oceano sobre bandolins,

pedindo esmola nas igrejas de Pamplona,

em cada insulto mastigando sóis.

RENOVOS DO MAR IV

Foi assim que palmilhei os Sete Mares,

a desgastar a sola dos sapatos

e sobre os Alpes habitei nos matos,

bebi de Nazca as águas tumulares.

Em Salamanca, as feições patibulares

perfuraram meus olhos como gatos.

Fui a Elêusis narrar estranhos fatos,

fui marabu no Egito ante os milhares.

Em Joannesburgo comprei um girassol

para alimento de meus orangotangos

e em Krasnoyarsk fui dançar meus tangos.

E ao meio-dia, dormi em Krasnopol,

enquanto a lua se penteava, sem cuidados,

protegida por meus dedos enlaçados...

RENOVOS DO MAR V

Sobre as lagoas colhi feixes de trigo

e minha casa flutuou sobre as areias.

Comi papiros e teci minhas meias

E ao Partenon cheguei, buscando abrigo.

Aos etruscos me mostrei como inimigo

e apenas riram, com suas caretas feias.

Nas catacumbas de Tarquínia pus colmeias

e em Cerveteri contemplei o meu jazigo.

E fui buscar sementes de penedos

para ensombrear minha trilha sobre o mar.

E com gotas de Oceano, pelo ar,

ergui escada, com as falanges de meus dedos,

para nas nuvens poder escorregar,

até choverem para mim os seus segredos.

RENOVOS DO MAR VI

E aos aborígenes cantei meus versos nus,

ao devolver-lhes meus velhos cangurus,

que de Marte e de Vênus lhes trouxera,

enrolados nos cabelos de minha espera.

E finalmente, nas praias de Aitutaki,

usei minha pele para montar um atabaque

e fui depois aos holandeses ensinar

como os melhores diamantes lapidar.

E fui resina feita de suores,

vestígios secos de ácidos amores,

“perdida para mim toda a Esperança”...

E num balão fui percorrer a França,

onde entrevi as sinas de mil povos,

na minha busca do mar por seus renovos.

William Lagos
Enviado por William Lagos em 26/02/2012
Código do texto: T3520692
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