A LEGIÃO DOS ÚRIAS

De

Vinicius de Moraes

(Li pela primeira vez essa poesia quando ainda era adolescente e ela me impressiona até hoje.)

Rio de Janeiro

Quando a meia-noite surge nas estradas vertiginosas das montanhas

Uns após outros, beirando os grotões enluarados sobre cavalos lívidos

Passam olhos brilhantes de rostos invisíveis na noite

Que fixam o vento gelado sem estremecimento.

São os prisioneiros da Lua. Às vezes, se a tempestade

Apaga no céu a languidez imóvel da grande princesa

Dizem os camponeses ouvir os uivos tétricos e distantes

Dos Cavaleiros Úrias que pingam sangue das partes amaldiçoadas.

São os escravos da Lua. Vieram também de ventres brancos e puros

Tiveram também olhos azuis e cachos louros sobre a fronte...

Mas um dia a grande princesa os fez enlouquecidos, e eles foram escurecendo

Em muitos ventres que eram também brancos mas que eram impuros.

E desde então nas noites claras eles aparecem

Sobre cavalos lívidos que conhecem todos os caminhos

E vão pelas fazendas arrancando o sexo das meninas e das mães sozinhas

E das éguas e das vacas que dormem afastadas dos machos fortes.

Aos olhos das velhas paralíticas murchadas que esperam a morte noturna

Eles descobrem solenemente as netas e as filhas deliqüescentes

E com garras fortes arrancam do último pano os nervos flácidos e abertos

Que em suas unhas agudas vivem ainda longas palpitações de sangue.

Depois amontoam a presa sangrenta sob a luz pálida da deusa

E acendem fogueiras brancas de onde se erguem chamas desconhecidas e fumos

Que vão ferir as narinas trêmulas dos adolescentes adormecidos

Que acordam inquietos nas cidades sentindo náuseas e convulsões mornas.

E então, após colherem as vibrações de leitos fremindo distantes

E os rinchos de animais seminando no solo endurecido

Eles erguem cantos à grande princesa crispada no alto

E voltam silenciosos para as regiões selvagens onde vagam.

Volta a Legião dos Úrias pelos caminhos enluarados

Uns após outros, somente os olhos, negros sobre cavalos lívidos

Deles foge o abutre que conhece todas as carniças

E a hiena que já provou de todos os cadáveres.

São eles que deixam dentro do espaço emocionado

O estranho fluido todo feito de plácidas lembranças

Que traz às donzelas imagens suaves de outras donzelas.

E traz aos meninos figuras formosas de outros meninos.

São eles que fazem penetrar nos lares adormecidos

Onde o novilúnio tomba como um olhar desatinado

O incenso perturbador das rubras vísceras queimadas

Que traz à irmã o corpo mais forte da outra irmã.

São eles que abrem os olhos inexperientes e inquietos

Das crianças apenas lançadas no regaço do mundo

Para o sangue misterioso esquecido em panos amontoados

Onde ainda brilha o rubro olhar implacável da grande princesa.

Não há anátema para a Legião dos Cavaleiros Úrias

Passa o inevitável onde passam os Cavaleiros Úrias

Por que a fatalidade dos Cavaleiros Úrias?

Por que, por que os Cavaleiros Úrias?

Oh, se a tempestade boiasse eternamente no céu trágico

Oh, se fossem apagados os raios da louca estéril

Oh, se o sangue pingado do desespero dos Cavaleiros Úrias

Afogasse toda a região amaldiçoada!

Seria talvez belo - seria apenas o sofrimento do amor puro

Seria o pranto correndo dos olhos de todos os jovens

Mas a Legião dos Úrias está espiando a altura imóvel

Fechai as portas, fechai as janelas, fechai-vos meninas!

Eles virão, uns após outros, os olhos brilhando no escuro

Fixando a lua gelada sem estremecimento

Chegarão os Úrias, beirando os grotões enluarados sobre cavalos lívidos

Quando a meia-noite surgir nas estradas vertiginosas das montanhas.

pslarios
Enviado por pslarios em 29/01/2012
Código do texto: T3468921