LAVAR A CIDADE**

Eu tenho água pra lavar a cidade

e muita mágoa pra fazer o enxágüe.

Tenho vento suficiente pra varrer o mundo,

sacudir as árvores e destelhar as casas.

Eu tenho dor, eu tenho calo, eu tenho o pé inchado

de tanto correr atrás de estrago pra adiantar o lado.

Eu faço samba, eu danço e canto sem ser o cantor.

Eu cumpro a sina e descreio do destino. Sou desatino.

Eu ando no meio fio, eu teço a rede e pesco o peixe.

Eu faço o feixe e eu mesmo o quebro.

Eu me arreio e me cavalgo. Sou notívago e acordo cedo.

Eu colho o que não plantei e esqueço o que teci.

Assim vou levando o fardo, rompendo cerca.

Eu sou o arco e o alvo, da cidade a dor.

Do chão em que fui plantado parti.

Eu sou daqui, mas estou chegando agora.

cp-araujo@uol.com.br