A VIDA PELO CALCANHAR
A vida é uma constante releitura. Não é que, se vamos nos procurar em textos mais antigos, terminamos relendo o novo no velho, o atual no que já foi? Caminhos são circulares por mais que a gente teime em dizer que anda "pra frente". Sendo assim, busquei em crônica de dois anos atrás, palavras para este poema inusitado. Me reescrevo e fico um tanto pasma a pensar que tantos dias já vivi após aquela data, e ainda estou aqui a reconstruir a realidade que, em essência, se mostra algo imutável, e à qual apenas dirigimos olhares diferentes, de olhos mais usados, cansados, vividos...
Queres me matar,
oh de dentro? ...
Como calar
o pensamento?
Vai-te ó carcereiro!
"O pensamento és tu
por inteiro...
( que te fala e te ouve )"
"Assim pois, é que te disseram não?
Um não sem rachadura
superfície intacta
bloco de concreto
Um não sem compaixão
um não insinuado em silêncio
ausência
muro intransponível
acabadamente negativo
Um não redondo
ou carregado de espinhos
cortante como navalha
Um não abismo
quadro de arte abstrata
que se olhado de cabeça pra baixo
não fará muita diferença! "
Só sei que aprendi muitas formas de negação, vida afora:
"Nunca mais" é a morte consumada
"Talvez" é um meio não
"Quem sabe", total indefinição...
Ah, e este "só Deus sabe"
que paira no ar
é para mim
a definitiva e suprema
rua da amargura
com sentido obrigatório!
"Precisas do lacre
na porta fechada
pelo não escancarado
por mais que doa...
Ah, esta dor...
esta dor
é a dor dos frios
de julhos intermináveis...
" Precisas afastar a assombração
mula-sem-cabeça
fantasma da dúvida
que alimenta a mágoa
deste cadáver insepulto
[ou mausoléu profanado...]
Mas fica atenta...
Lacrar a mágoa, entanto,
ainda assim a deixará visível
como túmulo
para tuas flores e lágrimas !"
Engulo em seco...
como urdir tal fecho?
E fechos são como cicatrizes
para sentir
com a ponta dos dedos
das noites de vigília ...
E dores cristalizadas
são como mapas
a machucar as costas
lençóis enrugados
em noites de insônia...
"Ah que te perdes!
E já se vai o dia a terminar
no mês que já se finda
num ano que logo passará.
Desconheces acaso, que o Tempo
tudo apazigua?
E pensar que deslizei um dia
sobre aquelas águas...
"Podes me execrar
e mandar-me embora
mas digo-te
com a sabedoria dos Tempos
com o fatalismo diante das evidências
com a certeza de alma velha:
Tua vida, minha bela, está pelo calcanhar
Equilibra-te bem e trata
de apoiar os pés por inteiro
no piso firme
das constatações do irremediável...
E para começar
Diante de tal abismo
minha cara...
melhor é
não olhar pra baixo!!! "
Vai-te ó carcereiro !!!
"Sou aquele que te fala
e te ouve
Eu sou tu por inteiro..."