ROUPA ENXOVALHADA (GOROVINHAS) & MAIS

GOROVINHAS I (roupa enxovalhada)

Podei meu coração, cortado rente,

não cresce nada mais em minha aorta:

empreguei os capilares qual retorta

e os destilei, em vinho diferente.

Quero reter o tempo e fecho os olhos,

cobertos de chircal e de azevém:

a salamanca me amaldiçoou também

à vã procura do ouro dos piratas.

Só posso acompanhar os meus antolhos

e me afundar na sombra dessas matas.

Vivo iludido em encerrar o vento

no canto de minha sala, ele e o tempo,

sem precisar sequer de passatempo

para cumprir deveres esquecidos.

Mas o vento penetra nas paredes

e sobre mim é que lança fortes redes,

Desencilhando assim meu pensamento,

laçando em troca versos malferidos,

nessa ressaca feita de entreveros...

Comigo mesmo as lutas trabalhosas,

minutos a prender, em fios de rosas,

para empregar em meu serviço a aurora.

GOROVINHAS II

Eu vivo assim, de mim admirado,

mas sem buscar alheia admiração:

sou descrente demais dessa canção:

já me basta ser aceito, simplesmente,

tal qual eu sou, meus traços conservando,

preservados em fel, em mel de amoras,

pendurado ao ponteiro dez mil horas,

de que excogitei fados incríveis,

enquanto só, apenas perlustrando

a multidão das coisas impossíveis.

Somente pude tornar-me indiferente

a essa indiferença em mim tornada,

não me deseja a mulher que foi amada,

por mais que me acompanhe diariamente.

Desse modo a alma inteira fui podar,

usando antiga tesoura de esquilar!

Podado o coração, podei neurônios,

pus em garrafas de plástico e, na praça,

ninguém comprou-me as mudas dos axônios...

Não se expandiu a saga no infinito

e a venda de neurônios, que pirraça!

tornou-se em saquitel de amor aflito...

GOROVINHAS III

Tenho pensado em versos descabidos

com lâmina escrever, de aço e ferro,

mas as palavras se ameigam, só encerro

o testamento de meus dias vencidos.

Porque lavei minha lança em goma-laca

e as fibras do cristal mais pontiagudo

serviram de morrião no meu estudo

dessas almas imperfeitas de mulher;

talhado pela chuva, eu viro faca,

sou lâmina encerrada em malmequer.

Na fúria desse azul serpentiforme,

coloquei perante os olhos parabrisas,

para atacar o vento e as monalisas,

e em tudo para ti fui multiforme,

nesse soprar dos cílios para fora

a preparar-me para o teu agora.

E me acerquei de ti, chamei de novo,

abri uma fístula na veia a canivete

e construí um barco de confete.

Se entrares nesse barco do absurdo,

te levarei para bem longe desse povo

que não escuta nada e me acha surdo.

GOROVINHAS IV

Escrever versos é pôr no quaradouro

a alma enxovalhada, trema e til,

para ser embranquecida pelo anil,

nas ripas finas desse paradouro...

E como é estranho que essa roda azul,

misturada a sabão e a malefícios,

consiga diluir antigos vícios,

transformando em sentença de curul

essa mortalha viva do passado,

amarrotada com o resto do lavado!

Já foi levada no alto da cabeça

de muitas lavadeiras sem beleza,

purificada por águas de tristeza,

muito mais que por prece que se esqueça.

Alma entrouxada mais anil requer

do que a força braçal de uma mulher!

Assim invoco os duendes tutelares,

espíritos geniais, quatro elementos,

para que venham fazer o lavadouro.

Muito mais que pecados aos milhares,

lavam fracassos pelos quatro ventos,

dourando a alma, qual no nascedouro!

lupa I

nem sei se poderia, de fato, acompanhar,

com velhos olhos gastos tantos signos.

não vejo jeito de tornar benignos

os longos dias que passo a revisar,

sem ter prazer,

por puro esforço,

as traduções que fiz, buscando erros:

ler e reler,

dores no dorso,

só na folia do verso a refugiar,

nos disfarces mais podres e mais dignos,

em falas brandas e vazios malignos,

que me permitem viver, sem nem notar!

lupa II

mais um formato estranho é sugerido:

meu coração ferido

já tem rido

muito mais que meu viver justificou.

assim cantou

e dessangrou

no inútil verso que nem foi poema,

na murcha flor que não foi açucena,

na opacidade da angústia que envenena,

na vida morta dos corações rasgados.

lupa III

este barulho não me vem daqui:

vem de outra parte do mundo

e nem pertence

àquele som por vezes iracundo,

àquela vida que, às vezes, assisti,

mas que não vence.

esse fragor não vem de mim:

apenas ouço ao recruzar a rua

e não me atenho,

pois não me evoca uma esperança nua,

nem me parece revelar, assim,

por que aqui venho.

esse ruído pertence a outras pessoas:

escuto de passagem, impoluto

e nem me agito,

embora nos ouvidos me ressoe,

eu ouço apenas, nem sequer escuto,

tão forte grito.

lupa IV

estou apenas adiando este momento,

em que terei de iniciar o movimento,

a deslizar pela fresta o pensamento,

a deslocar para o fundo o sentimento

uma vez mais

no meu jamais,

me prostituo, sem arrependimento:

tal é minha vida

e dou guarida

nos meus neurônios, sem comedimento,

às ideias de outrem, em travestimento,

que verto ao português, em desalento,

na espera crua de um mísero portento.

lupa V

desta forma, o poema é reticência:

pode ser tudo ou nada, em empatia.

de teus anseios a plena antipatia,

pelo desprezo de toda a tua sapiência,

ou descaso profundo do que és.

junto a teus pés

eu o deponho.

talvez julgues meu discurso como ofensa

ou o encares com ressentimento.

feio portento

que um ao menos

te disponhas a provar de meus venenos.

mas lembra sempre que o verso não é meu

e nele provas um veneno que foi teu.

lupa VI

se não te serve

a plenitude da quimera que conserve

intacto o bagaço de teu sonho vão,

se não te basta o vácuo no ausente coração

[nada melhor que o vazio a preencher o nada],

toma a bênção desfolhada

e faz dela rodízio

e dá-lhe pleno homízio.

na implosão da alma,

revive a alheia calma

da plena desistência.

preenche teu vazio com ramos de impotência,

ascende a escada fria que te conduz à lua,

espalha tuas entranhas nas pedras desta rua

até ver-te completa,

em plena obsolescência.

DEMISSÃO I

hoje pretendo

dar aviso prévio

a todo amor que traga ao coração

que vá embora depressa esta ilusão

que sem motivo está me perturbando

amor do amor apenas denotando

relatando relutando

incomodando acomodando

cantando ecoando

vou acordar a aurora

à meia-noite

não tendo mais lugar em que me acoite

a noite amiga transformou-se em açoite

por isso quero o sol da groenlândia

seis meses brilha ao norte dessa escândia

islândia eislândia

irlândia eirelândia

laplândia lapolândia

ao meio-dia porém

eu quero a treva

que me impeça aproximar-me da janela

ardem caixilhos embaixo da panela

cozendo a carne de minha musa ausente

fritando os dedos em gesto onipotente

onipresente onipresente

prepotente prepotente

pente dente

ao meu alvitre

não há destino

mas quando ouvir as doze badaladas

sei que não foram por mim desperdiçadas

são doze horas de coagulado canto

que sempre serve como rima para pranto

paraponto paraponto

pesponto pesponto

ponto ponto

William Lagos
Enviado por William Lagos em 10/07/2011
Código do texto: T3086009
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