TESTAMENTO
Quem se habilita?
Deixo um rascunho de poesia
impublicável
uma viagem de automóvel na garagem,
sem guia
uma ilha sem água
e uma espada
cravada no coração
deixo um dia que esqueci
de viver
um rio que não atravessei
(covardia)
uma trilha na mata
que meus passos não viu
uma ideia livre no cio
pronta para engravidar
um pouco de impureza no ar
(para ser filtrada)
uma estrada sem fim
(para ser trilhada)
falta de gasolina em um motor
no cofre, sem chave
está uma nave sem rumo
escondida no vazio
uma noite insone
um pedaço de sonho
(este solto ao vento, que também
é da herança)
e umas marcas registradas
da areia
protegidas das traças
por umas teias de aranha
não deixo nada concreto:
das ideias, uns restos;
sobras da memória gasta
uns sinais de cansaço
um suor, sabor de sangue
feito do mormaço do dia
uma luz que não deu cria
talvez queimada
um desejo na madrugada
que não teve água para germinar
e um grão que não vingou
na mente
não fica nada de gente
há semente para a colheita