IL DUOMO & PARCENIA

IL DUOMO I (18 mar 11)

Durante a noite é que sai a mascarada

que me sorri, espiando das paredes,

com seus olhares famintos ou de sedes,

cada uma de seu gancho pendurada.

Existe máscara de couro fabricada,

comprada em Porto Alegre, como vêdes,

da Redenção num stand, sobre redes

exibida e em purpurina marchetada.

Existem máscaras que dizem venezianas;

parecem mesmo serem importadas,

mas quem nos diz que não vieram lá da China?

E há máscara de gesso, com humanas

feições, como Mercúrio desenhadas,

parcialmente quebrada pela sina...

IL DUOMO II

Durante o dia permanecem quietas,

embora, às vezes, pressinta o seu piscar

ou seus olhos vazios a observar,

quando passo a executar diárias metas.

Se as encaro, com intenções diretas,

de meu olhar procuram escapar,

de novo cegas, inermes, a empoeirar,

se não recebem limpezas bem completas.

Porém à noite, depois que a casa dorme,

elas saltam das paredes, ao comando

do deus Mercúrio, cuja face se refaz

e dançam horas a fio, em sua enorme

farândula secreta, alegre bando,

purificado de suas lembranças más...

IL DUOMO III

De certo modo, os corpos recuperam

para seus pés assim tamborilar;

a música que acompanha seu dançar

algumas vezes meus ouvidos perceberam.

Corpos, de fato, muitas nem tiveram,

foram só máscaras feitas para usar

no Carnaval, aqui ou no além-mar,

porém faces verdadeiras esconderam.

E se alguém, em certo dia, experimentou,

deixou-lhes no interior sua epiderme

e, com ela, alguns traços de sua alma.

Parte de si ali se aprisionou

e, a partir dessa lembrança inerme,

os corpos recompõem com toda a calma...

IL DUOMO IV

Hoje contemplo Il Duomo de Veneza,

entronizado sobre águas cinzentas,

recordação que com a memória tentas

recuperar dos véus de tua incerteza.

A catedral, soberba em sua nobreza,

muito escutou as penitências lentas

desses rostos, cujas vestes desatentas

se ergueram, num instante de leveza,

para desconhecidos, sem cuidado

ou, quem sabe, que conheciam bem:

máscaras anônimas, de falsa proteção.

Contudo, após o Carnaval passado,

confessionários, em longo vaivém,

escutaram sua estéril confissão...

IL DUOMO V

Assim as máscaras nas paredes presas

refazem essas danças silenciosas;

não têm orelhas, afinal, por mais sinuosas

que sejam suas feições lisas e tesas...

Mas essa música, durante suas proezas,

elas escutam, ao rodopiar saudosas,

pelas salas pequenas, mas formosas,

cujas paredes as mantêm ilesas...

No escritório, a música é constante,

mesmo depois de apagada a luz:

sua melodia mal e mal escuto...

Mas ouço, às vezes, ladrar incessante

a cadelinha Penélope, que induz

qualquer presença de alegria ou luto...

IL DUOMO VI

Então, levanto e acendo muitas luzes,

percorro a casa em busca de algum gato

que entrou pela janela; ou então um rato,

acompanhado por ela, ainda a bufar...

Porém só vejo as coloridas cruzes

desses rostos tracejados de recato,

pendurados e imóveis, triste fato:

não me permitem seu destino partilhar...

Que dessa dança nunca participo:

só me contemplam suas órbitas vazias,

sem qualquer crânio para as habitar...

E, no entretanto, algum estranho tipo

de mim mesmo, durante as noites frias,

talvez possa seus fantasmas abraçar.

PARCENIA I (Refeição Compartilhada) (2008)

Cortei a noite em duas e usei

cada pedaço em diferente fim.

Metade dessa noite foi pra mim:

por entre os alfarrábios a empreguei.

Mas a outra metade te mandei,

enrolando sonetos de carmim,

envelopando mágoa carmesim,

que à soleira de tua porta então deixei.

Melhor me fora deixar em teu umbral,

ao vento balançando, estranha trouxa

de retalhos de noite e desamor.

Escorreria assim em manancial

sobre tua mente a meia noite frouxa,

a derramar sobre ti o seu frescor.

PARCENIA II (19 mar 11)

A manhã então cortei em quatro partes,

para passar manteiga nas fatias;

mais tarde, um ensopado fiz dos dias

catados diariamente em mil descartes.

E recolhi cada hora em que te fartes,

para lavá-las com cuidado, em minhas pias;

descasquei em espiral, tomei as guias,

para com elas renovar as Sete Artes.

E fiz sanduíche com as obras da pintura,

pus o cinema no liquidificador,

uma salada preparei com a escultura;

depois grelhei a má literatura,

o teatro assisti, com certo amor,

só guardando para mim poesia pura.

PARCENIA III

A tarde novamente retalhei,

para coser meu manto desses talhos;

os panos costurei com doze malhos

e para a forja minhas mãos levei.

Quando vermelhas as horas eu deixei,

os minutos transformei em atos falhos

e pendurei os segundos pelos galhos

das árvores neurais que elaborei.

E transformei a tarde em três saudades,

porém a quarta parte ainda guardei,

envolvida numa paina de piedades.

E assim as horas perdidas espalhei,

nessas dolências de puras veleidades,

buscando te agradar, porém falhei...

PARCENIA IV

E desse modo, com um jato de ar frio,

tomei as mil fatias desse tempo

para fazer pão-de-ló nesse retempo:

fiz rocambole com recheio de arrepio.

E esses mil doces que na memória crio,

enquanto mexo a panela do destempo,

só me serviram para contratempo:

foram ácidos demais, em seu desvio

dessas receitas contidas em meu sangue.

Ao invés de doces, fiz um sarrabulho,

ao molho pardo, com linfa de desoras...

Porém a noite se tornou exangue,

enquanto os dias se perderam nesse esbulho

da longa procissão de tuas demoras.

PARCENIA V

Mas não é sempre que o tempo se devora

impunemente, seja nosso ou alheio.

Os meus minutos são filhos do receio

e meus segundos derretem-se na aurora.

Cada detalhe embutido num embora,

enquanto rezo preces que não creio,

nessa esperança vã pelo teu seio,

em seu sabor sutil de mosto e amora.

Porque o tempo se vinga, certamente,

e de algum modo, e nisso não me iludo,

a cada hora que passa, eu envelheço.

Porque em todos seus andares é inclemente

e se não tenho teu amor de escudo,

definho a cada instante em que padeço.

PARCENIA VI

Tornou-se inútil retalhar a aurora,

em pequenos fragmentos e fatias,

na esperança de cortar diversas vias,

com que possa compensar a tua demora.

Em minha mochila, eu trago os bens de outrora,

porém já se acham mofados esses dias,

minhas refeições outras tantas desvalias,

minha bebida um coquetel de embora.

Por mais que ansiasse contigo a parcenia,

vi os minutos fluírem pelos dedos

e roídos de traças meus segredos.

Pois essa refeição, que assim queria

contigo partilhar, mostrou-se oca,

como o sabor das fadas em minha boca.

William Lagos
Enviado por William Lagos em 31/03/2011
Código do texto: T2880763
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