O DIA-A-DIA DA CRIANÇA DE RUA

O DIA-A-DIA DA CRIANÇA DE RUA

O LIVRO

já cedo no trecho

achei um caderno

jogado no lixo

bordado de flor

já todo amarelo

o que tá escrito

gostava de vê

coçando o queixo

abri o caderno

desenho de bicho

fico triste, ai que dor!

um cachorro, um castelo

o guarda do apito

... mas eu não sei lê

O ALIMENTO

segui procurando

vazio o bucho

um monte de papel

um pão esfarelado

reparti algum osso

com pouco de carne

tinha fome o cachorro

o povo passando

vestido de luxo

ligeiro, um tropel,

nem olhava de lado

pensei no Pai nosso

lá longe um alarme

me assusto... e corro

BARRACO ABANDONADO

no meio das moita

ninguém me surpreende

num barraco/abrigo

o sol já sem força

caindo atrás da ramagem

e eu vou com ele

ocupar meu cantinho

comigo se amoita,

me lambe e entende

o cachorro amigo

e junto reforça

a pouca coragem

que eu sinto na pele

sou criança, sem lei, sem carinho.

FAMÍLIA

faz tempo, quase um ano

(deixei lá minha mãe)

no barraco imundo

de tábua velha

mordido de cupim.

a mãe tá com outro

que não é meu pai

o pai foi embora

do velho barraco

beber nos boteco

sem trabalho e doente

ele dorme na rua

sem família e sem casa

assim como eu

sou menina e sonho

com boneca vestida

mas cresci na pobreza

sem nada aprender

brincar não podia

o padrasto surrava

se não fosse ao trabalho

pedia esmolas

de casa em casa

se a mulher me xingava

eu partia pra outra

e assim aguentava

os maus tratos de todos

os de casa e da rua

um dia o padrasto

me agarrou na macega

fugir não podia

ele era mais forte

me ensinou ali mesmo

o caminho do sexo

que à força aprendi

dali mesmo do mato

fugi com vergonha

só tenho dez anos

e já sou mulher

vergonha da mãe

do padrasto – ai que medo!

vergonha de mim

ESCOLA “RUA”

Eu era ainda criança,

de viver só tive muito medo;

tive fome e tive frio.

O sol, se vinha, aquecia

meu corpo quase gelado;

foi ralo a noite inteira

o jornal que me cobria.

Mais um dia mendigando,

ninguém me dava trabalho.

“... eu era ainda criança

e além disso estava imundo.

A roupa tinha mau cheiro,

sem higiene e quase nu “

diziam, e vagabundo.

As vitrines coloridas

Atraiam os meus olhos

Como as moscas vão ao lixo

que é jogado no lixão

as madames davam volta

protegendo o seu nariz

qual se eu fosse algum ratão

todos limpos e arrumados

vão pra cima e pra baixo

em frente à pastelaria.

Se me anima o bom cheiro

De roubar algum pastel

E o guarda me persegue

Eu me escondo bem ligeiro.

Mas na rua me acostumo,

Sou um eterno aprendiz;

lá encontro “uma alma boa”

que me dá trabalho e pão;

me contrata pra ser “mula”

nem pergunto se isso é crime

- levo a “droga” do patrão.

Pagamento? Sempre o mesmo:

cama, comida e maconha.

De mais nada eu preciso

por que estou de bucho cheio.

Nessa escola aprendo ainda

a ganhar dinheiro fácil

quando assalto o bolso alheio.

Afonso Martini
Enviado por Afonso Martini em 22/08/2009
Código do texto: T1767771
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