o nosso singular

"sonhos são como deuses: quando não se acredita neles,

deixam de existir" (p. moska)

os filhos de javé não falam a mesma língua

muitos destes vivem à míngua

os filhos da serpente morrem de sede

e ele, o homem sedento, só espera de novo ver-te

você, que não existe

e que é triste

você, que é construção

imaginação

você, que está sentada

no topo do arranha-céu selvagem

ele é filho de javé, filho da serpente,

filho da operária, filho da puta, filho da luta,

filho dos dias

e os dias são ondas

os dias são dúvida

e não se paga fácil a dívida dos dias

pois a dádiva dos dias não é dada de graça

por favor

entenda a palavra “você” no plural

na verdade “ele” também é no plural

“eu” sou no plural:

vocês, eles e eus

todos tão plurais

e tão danados

(o nosso singular não nos permite conversar)

ele acende o cigarro que você não gosta

assim como você não gosta de imaginá-lo

como um par que fuma

anjos não fumam tabaco

só maconha

é que você o imagina como um anjo

e anjos, todos sabemos que são uns chatos

daqueles chatos com os quais é fácil de se conviver

fáceis de dobrar e amassar

só não é fácil encontrá-los

não em qualquer esquina

não em qualquer estado

anjos são presentes demais

anjos mentem com toda a sinceridade dos mundos

o adeus deles é de mentira

eles estão presentes

porém com uma ausência dolorida

eles até ajudam às vezes, mesmo à distância

mas com o preço de uma leve dor

isso os faz anjos

o mundo tem seis bilhões de gentes

quase seis bilhões de crentes

que não falam a mesma língua

como ele e você

soltos no oceano de gentes

no oceano de crentes

você e ele

que, no fundo, se entendem muito bem

o nosso singular não nos permite conversar:

eis o paradoxo do querer

e no meio das interferências radioelétricas

ele e você devem saber, apesar dos pesares

o que um ao outro dizer.