EM JEITO DE CANTIGA

EM JEITO DE CANTIGA

Num certo e já distante dia

Quando a brisa mal bulia

E aurora de seu sono despertava,

Peguei um alforge cheio de nada

Para enchê-lo de recordações

E delas me alimentar,

Na longa viagem prestes a começar

Lá no porto de Leixões.

Uma lágrima colhi do meu rio Agadão

Que pareceu por mim chorar,

E um tantinho da tramela do velho moinho

Que desde que o mundo era mundo,

Sempre a mesma cantiga trautear:

Trau tau tau

Trau tau tau

Trau tau tau.

Juntei uma nesga de musgo do muro

Tão velho como o tempo,

E quase chorando uma nota da sinfonia

Do meu doce melro trovador,

Que costumava cantar à porfia

Com o solo do bandolim,

Tocado com maestria

Por estimado, reformado professor.

Nos ‘pinheiros altos’ colhi uma pena

Dum gaio majestático, altaneiro,

Que descia em ziguezague pelo ar

Para enfeitar minha fantasia

De ainda um dia,

Eu também poder voar.

A arte do pisco também guardei,

O qual para os insetos abocanhar

Parecia bailar,

Sobre a cumeeira do telhado

Da casa que foi do pai do meu pai.

Ah, do pesadelo do meu gato matreiro,

Que no quentinho borralheiro

Da lareira, a dormitar,

Sonhava o serão inteiro

Com o petisco do pisco arisco,

Que não conseguia caçar.

Guardei por fim uma Ave-Maria

Que no sino da velha igreja tocava,

Para que me valesse na travessia

À terra distante e tão sonhada

Onde uma árvore a mais cobiçada,

Que em vez de frutos conhecidos

Carregava de patacas de ouro,

Com que índias enfeitavam seus umbigos.

De passado e presente

Meu alforge de sonhos abarrotei,

Até a carraspana de aguardente

Que certa vez eu tomei,

E que me fez ver o mundo

Mas de cabeça ao contrário

Para o poder espreitar,

E ver como era seu fundo.

Eduardo de Almeida Farias
Enviado por Eduardo de Almeida Farias em 04/12/2023
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