PARTITURAS DE CERTA SINFONIA
Certo dia, quando o vento mal bulia
E a aurora de seu sono despertava,
Peguei meu alforje cheio de nada
Para enchê-lo de recordações
E delas me alimentar
Na longa viagem
Prestes a começar,
Lá para as bandas do Porto de Leixões.
Uma lágrima colhi do meu rio
Que me pareceu que por mim chorava
E um tantinho da tramela do moinho
Que desde que o mundo era mundo
Sempre a mesma cantiga trauteava:
Trau tao tau
Trau tao tau
Trau tao tau;
Juntei uma nesga de musgo dum muro
Acho que tão velho como o tempo
Peguei uma réstia de sinfonia
De conhecido melro cantador,
Que costumava assobiar à porfia
Com certo bandolim
Tocado com maestria
Por sabido e estimado professor;
Nos pinheiros altos ao cimo do lugar
Colhi uma pena dum gaio majestático
Que descia em ziguezague pelo ar
Para enfeitar minha fantasia,
De ainda um dia
Eu também poder voar.
Guardei também os meneios
De certo pisco arisco
Que para os insetos abocanhar
Parecia até bailar
Sobre a cumeeira da casa
Que foi do pai do meu pai.
Não esqueci também o rosnar
Do meu gato borralheiro
Que sonhava tempo inteiro
Com o petisco que era o pisco,
Que ele não conseguia caçar.
Com devoção guardei uma Ave-Maria
Que no sino da igrejinha tocava
Para que me valesse na grande travessia,
Que para terras de além-mar me levava
E das quais eu nada conhecia.
De sonhos meu alforje abarrotei
Até a carraspana de aguardente
Que certa vez eu tomei,
Num dia quente, de escaldar
E que me fez ver o mundo barafundo
De pernas pro ar.
Ai, quantas partidas
Ai, de quantas partituras
É feita a nossa vida;
Em dores e amarguras
Eu não quero falar,
Que meu alforje não suportaria;
Essas eu deixo aos pés da Virgem Maria
Para delas me livrar.
e.a.f.