PARTITURAS DE CERTA SINFONIA

Certo dia, quando o vento mal bulia

E a aurora de seu sono despertava,

Peguei meu alforje cheio de nada

Para enchê-lo de recordações

E delas me alimentar

Na longa viagem

Prestes a começar,

Lá para as bandas do Porto de Leixões.

Uma lágrima colhi do meu rio

Que me pareceu que por mim chorava

E um tantinho da tramela do moinho

Que desde que o mundo era mundo

Sempre a mesma cantiga trauteava:

Trau tao tau

Trau tao tau

Trau tao tau;

Juntei uma nesga de musgo dum muro

Acho que tão velho como o tempo

Peguei uma réstia de sinfonia

De conhecido melro cantador,

Que costumava assobiar à porfia

Com certo bandolim

Tocado com maestria

Por sabido e estimado professor;

Nos pinheiros altos ao cimo do lugar

Colhi uma pena dum gaio majestático

Que descia em ziguezague pelo ar

Para enfeitar minha fantasia,

De ainda um dia

Eu também poder voar.

Guardei também os meneios

De certo pisco arisco

Que para os insetos abocanhar

Parecia até bailar

Sobre a cumeeira da casa

Que foi do pai do meu pai.

Não esqueci também o rosnar

Do meu gato borralheiro

Que sonhava tempo inteiro

Com o petisco que era o pisco,

Que ele não conseguia caçar.

Com devoção guardei uma Ave-Maria

Que no sino da igrejinha tocava

Para que me valesse na grande travessia,

Que para terras de além-mar me levava

E das quais eu nada conhecia.

De sonhos meu alforje abarrotei

Até a carraspana de aguardente

Que certa vez eu tomei,

Num dia quente, de escaldar

E que me fez ver o mundo barafundo

De pernas pro ar.

Ai, quantas partidas

Ai, de quantas partituras

É feita a nossa vida;

Em dores e amarguras

Eu não quero falar,

Que meu alforje não suportaria;

Essas eu deixo aos pés da Virgem Maria

Para delas me livrar.

e.a.f.

Eduardo de Almeida Farias
Enviado por Eduardo de Almeida Farias em 09/12/2021
Código do texto: T7403324
Classificação de conteúdo: seguro