UM FRIO DE FAZER LEMBRAR

Manhã de geada,

doce verde açucarado,

cristais transparentes,

cacos de vidro, prismas,

aquarela, glíter delicado,

purpurina no vestido de fina gaze

desta cerração que amanhece

esfumando a paisgem,

confundindo a visão,

imagens derretidas,

vidraças embaçadas,

natureza chorosa,

imagens através de olhos rasos dágua...

E um vulto à distância

vem abrindo passagem

e aos poucos vai

tomando forma

em passadas largas

rumo à casa modesta.

Um diluído clarão

vem subindo por detrás dos morros,

astro em ouro claríssimo

abraça mornamente esta

manhã fria e faz o corpo

se espreguiçar aconchegado

e num doce suspiro sentir

o ar gelado invadindo

por dentro...

lembranças de manhãs distantes,

de cafés fumegantes e

velhos fogões fumarentos.

Uma velha casa ente o arvoredo

o velho poço, amoreiras, ameixeiras,

laranjeiras, avós, dias eternos,

silêncios, sinos a tocar e

histórias na caída da noite,

conversas, silêncios, preces...

lampiões, mistérios na madrugada,

ô de casa, benzeduras, paióis,

a missa de Natal, versos,

velas acesas no pinheiro,

cantigas, orações...

Manhã fria, lembranças

de mãos geladas de criança

tocando a vidraça...

Invernos intermináveis,

a capa preta de meu pai

sob a qual nos escondíamos

junto a seu corpo e isso era

toda a maravilha da vida,

na imensa sala quase vazia,

com suas quatro janelas,

olhos grandes e abertos...

Garoa fina, setembros ,

flores de laranjeira, os

bolos de minha mãe, flores de noiva

outubros amenos, inocência ,

E esta geada que eu gosto de tocar,

deixar as mãos frias até doer,

deixar o pensamento aquecido

nos carinhos das lembranças,

mãos vermelhas de frio

acenam distantes nesta cerração do tempo,

mãos pequenas, cristalizadas num instante qualquer!

Olhos pra sempre fixos naqueles morros,

vozes pra sempre ressoando nas tardes perfumadas

de cheiros agrestes das capoeiras,

de canteiros de violetas e margaridas.

E esta cerração vem me acordar lembranças,

de narizes gelados ao redor das fogueiras de junho,

de correrias, balanços, mãos sujas de terra...

E nem quero mais sair desse tempo tão perfeito,

tão exato, tão deliberadamente oportuno,

deliberadamente sonhado por algum ser abençoado

pra fazer felizes as crianças que então

habitavam estas redondezas da vida,

de um tempo feliz e despreocupado,

que sempre volta com as geadas,

volta através deste ar gelado

que invade os pulmões

em doces imagens esfumaçadas,

numa aquarela enfeitiçada e terna,

animada pelo som de um longínquo sino,

revelada pelo canto dos galos ao amanhecer

e pelos mistérios que eu imaginava

existirem após as curvas do caminho...

tania orsi vargas
Enviado por tania orsi vargas em 11/10/2007
Reeditado em 23/05/2011
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