Bola da vez

Nunca fui bom de bola

nunca me enganei

nem tentei enganar ninguém.

Na infância era o primeiro

a chegar no campo

e o último a sair, aferrado

à esperança de que alguém

cansasse, enjoasse, desistisse

ou me olhasse e tivesse pena

e cedesse a vaga.

Essa parte da infância foi osso

e como foi ruim à época

é ruim agora sentir a lembrança

me abraçar com o riso escroto

estampado na cara.

Parte mais escrota e triste

era a época do campo da Penha.

Próximo ao quebra-mar

dava para sentir o salitre

devorador vir no vento.

Eu já tinha passado a adolescência

calejada

mas ainda seguia à vida adulta

aferrado à esperança de poder

dar minhas caneladas.

Tudo igual:

chegava cedo ao campo,

chovesse mil dilúvios,

ardesse 777 sóis

eu estava lá antes da bola

e sempre ficava sentado ao lado

do coqueiro

ou sentado à sombra da aroeira

e voltava para casa sujo

sem ter jogado.

Era muito pior:

Tinha Queró.

Queró tinha uma autoridade

instituída

como em todo campo

onde os que jogam mais

tem as rédeas do jogo.

Apesar de só ter um olho

o cara tinha mais visão de jogo

que qualquer um ou todos juntos,

era o maior carrapato marcador

e passava a bola com tanta facilidade

quanto se fizesse com as mãos.

Além da autoridade de saber jogar

tinha a panelinha de sempre

aquele joga, aquele não joga

e assim a banda tocava.

Na verdade, até o coqueiro jogava,

eu nunca. Às vezes faltava jogador

e ele preferia deixar o time

com um a menos,

eu só jogava no time adversário

(se ele não manipulasse o time

adversário para que me deixasse

de fora).

(Fingi que) nunca dei bola a isso,

(fingi que) nunca quis saber o porque

da repulsa às minhas caneladas

pouco talentosas,

então chegou o dia em que decidi

parar de ir ao campo

e não perdia nada em perder tão pouco,

minhas tardes ficaram mais longas

e tinha mais tempo para minhas leituras.

E li muito nessa época,

enchi vários cartões da biblioteca.

Então, depois de anos e anos e anos

garantido pela distância do campo

e do bairro e resguardado

em meu silêncio rancoroso,

deu vontade de saber o porquê

de Queró nunca me deixar jogar,

aí já era tarde:

seu velho coração traiçoeiro falhou

e agora não joga nem ele, nem eu

e a bola não já tem vez.

Grouchesco
Enviado por Grouchesco em 30/10/2019
Código do texto: T6782947
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