lembranças

o mamoeiro sempre generoso

de braços abertos, as mãos esfolhadas

o peito oferecendo os frutos de polpa encarnada,

maduros, carnudos, cheirosos, bicados

a casa do joão-de-barro na paineira espinhenta

rudeza ao avesso do macio do algodão

e das delicadas flores rosadas

o guapuruvu altíssimo e as incontáveis favas

alvo de certeiras estilingadas

desciam voando, rodando, feito helicópteros

nas brincadeiras viravam dinheiro, tudo compravam

comidas, doces, brinquedos, o sítio inteiro

a grande pedra de granito

redonda, imóvel, imutável

a dizer que algo permanece constante

quando tudo muda

o terreiro de secar café e feijão rajado,

à noite, na escuridão

as crianças deitadas no chão de tijolos de barro

ainda aquecidos pelo sol da tarde

era o mirante do firmamento

um borrão de luzes no céu

nunca mais se viram estrelas tão brilhantes

as frutas negras reluzentes das jabuticabeiras

carregadas, escondendo a cor da madeira

a amoreira e o pé de jamelão

as bagas caídas tingindo o chão

os sabiás de peito laranja e bico docemente arroxeado

a pescaria de traíras nas lagoas da antiga olaria

o cheiro e as cores das floradas ao longo do ano,

a do maracujá era muito esperada

as montanhas pedregosas e verdes no horizonte

lá bem longe o gado manso, paciente, a pastar

a garapa espremida à manivela no paiol

a vaca malhada

o leite morno e espumoso de madrugada

às vezes um susto, uma carreira

árvore trepada às pressas, a vaca está brava

a pamonha reunindo famílias inteiras

em torno do forno de barro no quintal

curau, bolo, espiga, canjica, outro bolo

um fim de semana de milho sem fim

as tardes de verão modorrentas

ciciadas de cigarras

os gritos vespertinos dos bandos de anus

roucos gargarejos arrastando-se morrediços

lamentos despedindo-se da luz do dia

as caminhadas noturnas pela estrada de terra

em meio às sombras das árvores, até a cidadezinha

trêmulas canções iam tentando espantar

o cavaleiro sem cabeça a nos espreitar

o livro crônicas marcianas na estante

entre tantos outros, espantosos mundos distantes

o sobressalto das aventuras livrescas

lidas à luz do lampião de gás

encerravam o dia confundindo

o sono, o sonho, o real

tão intenso,

tão fugaz

ah, como eram boas

as férias daqueles tempos de criança

inesquecíveis, irrecuperáveis

Publicado no livro "gestação caosmopolita" (2014).