os ramos de violeta

minha avó levantava cedo

ia recolher as flores

acocorada entre os compridos canteiros

verdes pintalgados de anil

horas e horas passavam

depois

arrumava as violetas em macinhos

com folhas em volta

amarrados com fio de amarrilho

cultivado no fim do quintal

e os macinhos ajeitados

um a um

numa cesta de bambu trançado

perto da hora do almoço

e à tarde

ia descalça, com a cesta

num passo vagaroso e certo

para a estação do trem

que vinha dos armazéns da cidade

e ia para a serra da cantareira

depois do horto

os passageiros chegavam

em meio à fumaça branca

os apitos eram de um outro mundo

distante das buzinas e da balbúrdia

a florista, na estaçãozinha de santa terezinha

os olhos brilhantes do sol sem folgar

oferecia um macinho

e os que faziam aceitar

tinham vaga compreensão

de que estavam ali a passar

da cidade ao cidadão

minha avó não lia, não escrevia

aprendera vivendo tudo o que sabia

primeiro, como camponesa de incultas terras de portugal

depois, como florista da periferia de imigrantes de são paulo

conseguia encher minha boca de saliva ao pronunciar "gostosos"

os esses portugueses bem chiados

seus olhos sorrindo

seus dedos num gesto traduzindo o sabor

ao falar-me dos pêssegos que colheríamos

se cuidássemos bem daquele pessegueiro

que ela me ensinava a plantar

(e como carregou o pessegueiro

fazendo a festa da molecada

e da passarada)

ela era rude

mãos de calos

unhas cheias de terra

parecia impossível que mãos tão rudes pudessem não ser brutas

mas seus dedos arranjavam os macinhos tão delicados

como as violetas que cultivava

seu rosto era de rugas profundas

como suas emoções

a boca desdentada

pés e joelhos grossos

andar desajeitado, cansado

a roupa muito pobre

as palavras duras,

palavrões

eu me envergonhava quando ela esbravejava aos berros no ônibus

quando queria passar e as pessoas lhe atrapalhavam o caminho

não gostava que lhe atrapalhassem o caminho

era direta, autêntica

rude

e tenaz

suportava meu avô

doente, amargo, revoltado

que a espezinhava

fazia dela a vítima do seu rancor

não sei por que

ela deixava

meu avô extravasava nela toda sua revolta

enquanto ela seguia paciente a sua vida

sofrida

brilhando no olhar a sua liberdade

mostrando no rosto e nas mãos a sua coragem

transmutando da terra

sua vontade em criação

cedo

minha avó ensinou-me muitas coisas

sem saber

ainda a reencontro

nos ramos de violeta

Publicado no livro "cio do século" (2011).