OLHO VERDE

Fui com os pescadores, muito cedo,

ganhando o mar alto, sem horizontes,

num sobe e desce terrível em ondas sem espuma,

que me derrotou por inteiro,

e me deixou miserável, enjoado,

no chão de um barco onde não há espaços inúteis...

“bate lá, João...bate lá...!”,

gritava um para outro, acenando um remo,

incongruente para um barco daquele tamanho...

E o outro batia, um outro remo,

com força, de chapa na água...

“Mané, bate lá...bate lá, que tá de feição...”

Motores tensionavam cordas,

puxando o aparelho de rede para cima.

Paus de carga levantavam toneladas de sardinha miúda,

despejando-os com um som viscoso, nos porões...

Gritos mudavam-se em vozes,

e sombras brancas, de gaivotas endoidecidas,

faziam-se presentes como risos de barriga cheia,

numa voragem de sobrevivência...

Foi então, num átimo, que as ondas sumiram,

e se instalou um daqueles silêncios diferentes,

durante os quais, tudo, no mundo, fica acontecendo

em sons demasiado altos,

até se ajustar à nova situação...

Coniventes, os homens foram-se calando,

numa mistura de contentamento e superstição...

levantei-me e, de pé, no barco,

parecia estar em terra firme...

Lembro de ouvir um espanhol sussurrar:

“- es un' ojo!”, antes de começar a pensar outras coisas,

e me ausentar dali, em pensamento.

“-Um olho!”, um ponto verde de calma total,

no meio de uma tempestade que não chegava a sê-lo...

( A faina continuava, à minha frente,

em lentidões de detalhes que a luz dourava,

decorrendo numa espécie de beatitude indescritível,

cuja percepção me dividiu,

como se estivesse a ver-me olhando para mim...

A tensão, esvaíndo-se, abria um novo espaço de estar,

um fosso que nem as lágrimas procuravam encher,

um tapete virgem, para passos não dados,

rumo a não sei que outros nortes...

Foi como alcançar um ponto inteiramente nosso,

onde, finalmente, um abrigo inexpugnável

descartasse a necessidade de defesa.

Um lugar onde fosse possível fincar os pés,

ganhar raízes nas profundidades

e redescobrir as rédeas de todos os destinos,

retomá-las sem ter de as disputar a pulso,

e re-escrever uma nova história para todos os outros dias...

Um lugar de poder, especial,

onde finalmente, nos adviesse a consciência dos músculos tensos,

das pressões do quotidiano, do tamanho das lutas travadas

em tantas batalhas inglórias e desnecessárias...

E se as mentes se agitavam, ainda em receios,

os corpos sabiam que tudo estava bem... )

Aos poucos se dissiparam os brilhos,

as calmarias ensolaradas no meio do mar,

se reinstalaram os gritos das gaivotas,

e enormes ondas, como montanhas redondas,

pejavam o nosso caminho, no regresso à normalidade,

cortadas em espumas pelas proas altaneiras,

de onde um vento fininho e constante

trazia sal para a nossa pele, em arrepios...

Setembro 2007