TRIBUTO A AMADEU WOLFANG MOZART
TADEU BAHIA - autor
Há o poema da casa triste
Sim... Porque não?
Há tantos poemas
Por aí afora,
Poemas tristonhos
Mostrando sorrisos,
Lágrimas de solidão
Sufocadas em gemidos...
Porque não o poema
Solitário, de uma casa triste?
Da porta da rua – aos fundos
É tudo silêncio
Engolfado numa solidão
No monótono mundo
Da nostalgia,
Que me tira a calma
E asfixia meu resto de alma
Em versos dispersos
Que saem de mim
E batem em paredes, em retratos,
Em cadeiras antigas e usadas
Como a procurar o rastro
D’alguma pessoa... mas nada
Só poeira... no piano, nos móveis,
E lustres rachados na trovoada
Do último verão
Que adormece, esquentando bactérias
Estagnadas numa poça d’água
Embaixo da pia...
Nada... Silêncio! Falta de matérias
Até para se ter alegrias... Tudo falta!
Falta sorriso alegre
Das virgens coradas do outono
Falta a música leve e suave
Do piano sombrio e empoeirado
Que expõe n’uma página amarelecida
E sem arte
Um trecho da Sinfonia do Mozart,
O qual jaz esquecido e pensativo
Como a filosofar alguma coisa,
Faltam mulheres morenas
Deitadas – eroticamente nas camas
Mostrando os seios fartos
E belos
Sob o chambre transparente
Que lhes enfeita os corpos de Vênus,
Faltam flores: rosas, dálias, e girassóis singelos
Dourados, amarrados,
Como nu buquê romântico
Disposto femininamente num vaso
Antigo e amarelo de porcelana,
Faltam trepadeiras
Para subirem pelas paredes,
Aninharem-se nas janelas
Onde se perde um sorriso pálido
De criança.
Faltam o burburinho e a lufa-lufa
Das negras nas cozinhas – suando
Fazendo cuscuz, cocadas – e sorrindo,
Num sorriso meigo e doce;
Faltam os grandes saraus animados
Pelo tinir de mil taças rubras
Do Vinho do Porto
E conversar alegres e desinibidas
Como uma aranha tecendo a sua rede
Tranquila.
Falta o corpo esquálido
E pálido
Do poeta – seresteiro na varanda
Namorando a lua – enchendo a rua
Com a sua melodia triste e apaixonada,
Faltam luzes baças e ralas
Das lamparinas de azeite
Iluminando o salão de janta
Onde no teto preso balança
Um enorme lustre de cristal.
Faltam mãos para tirar a ferrugem
Da moldura do quadro de Cristo
Pendurado no quarto da donzela
E seus olhos santos, guardam,
Camisolas de dormir por cima da cama
E sapatilhas de couro roídas
Junto à janela ao lado.
Faltam gentes para abrir as janelas
Para purificar o ar mofado – usado
Pelas tristezas e pela solidão,
Faltam pássaros com seus cantos alegres
Numa melodia singela e clara
Duma Ave Maria
Envolvendo a casa
Na monotonia de mais um crepúsculo
Fulgurante e vermelho
Iguais as penas de um sabiá morto
Numa gaiola de prata;
Faltam mulheres para limpar os lustres,
Os cristais e espelhos do salão,
Para servir a janta, ninar as crianças,
Servir o chá e dar o rapé
Que limpam os pulmões para mais uma noite
De friezas sem fim...
Faltam mãos para rachar a lenha
E colocá-la na lareira – acender o fogo
E esquentar o ambiente
Em conversas de conquistas
E importantes histórias de caçadas
De peles nos Andes,
Faltam gentes para falar da neve
Que não existe por cá
Aproveitando os momentos breves
Para distrair os olhos numa pintura
Exposta sobre a lareira
...
Faltam bocas para provar do conhaque
Afoguear os rostos e os desejos
Recitar poesias e namorar lá fora,
Onde a frieza embala com seu canto triste
O ambiente cristaláceo de uma lua cheia,
Faltam lábios para unirem-se
Na força titânica do beijo
Que esquenta os corpos – e prende o peito
Numa ofegante e maravilhosa respiração,
Faltam “mãos bobas” de algum noivo
Ou enamorado ousado
Abrindo os botões forrados
Da casaca azulécea da donzela
Fazendo saltarem os pômulos rijos
Dos seios
De bico rosado - e palpitante
Onde mergulha e sufoca-se uma boca
Morrendo de desejos da carne!...
Mas falta tudo!... Falta até a moça
Com o rosto enrubescido, indignada de vergonha,
Vendo-se sugada, chupada, mordida, comida,
Abraçada
Ao corpo ofegante de um homem
Que lhe rasga as vestes
E deita-a na grama
Enquanto os desejos habitam os corpos
Suando – ansiando, sobre as flores novas
Do jardim,
Quebrando talos de plantas
Amassando seios
Acariciando seios
Chupando seios
Mamando seios
Apertado coxas quentes e ritmadas
Numa ilusão assustada
Pelo miar longínquo de um gato nervoso!
Sim,
Falta isso: corpos ferindo corpos
Que sorrissem e chorassem de dores
Sangrando os sexos, sujando as roupas,
Pingando as coxas do líquido viril;
Faltam cabelos adolescentes
Faltam pentelhos adolescentes
Forrando a grama – com carinho
Enquanto seios subissem e descessem
Como boias brancas
No oceano carnudo do desejo
...
Faltam piadas ditas com graças
Ao tocar dos sinos
Na Hora do Ângelus,
Faltam mãos de beatas benzendo-se
E dedos trêmulos, nos terços, valendo-se,
Prometendo promessas e velas sem fim.
Falta o cantar do Relógio Cuco
Cheio de cupins – parado –
Dependurado no salão,
Falta o tinir monótono das campanhias
E bocas dando ordens – e mordomos imóveis –
Clássicos e duros como estátuas
D’algum escultor sem arte,
Faltam pés e mais pés
Para passearem nos tapetes persas
Que forram os salões, quartos e oratórios...
Faltam mãos frescas
Para colher as flores - dispor nos vasos –
Escolher vestidos iguais à seiva rala
Dum jasmim...
Faltam corpos para ansiarem de amores
Na cama de casal – faltam...
E cravos nas lapelas das roupas antigas
E mãos que limpem as condecorações
Expostas nas estantes... Tudo isso.
Faltam intelectuais para absorverem
Toda a imensa sabedoria
Daquela velha e inóspita Biblioteca
Cheia de poetas, filósofos,
Santos e místicos
De “sabedoria espontânea”!
Faltam lábios de homem
Para fumarem os cachimbos velhos
Deixados sobre a lareira
E vozes divinas para interpretarem
Cantigas românticas
Iguais aos cantos dos pássaros
Em manhãs azuis de abril;
Faltam mãos – ‘inda virgens –
Para fazer falar aquele piano rouco
Onde se esconde o Beethoven
Com a sua cabeleira renascentista e louca
Regendo orquestras, tocando sinfonias,
Mostrando as agonias de um grande músico
Surdo!...
Faltam escultores – com mãos de Mestres! –
Para fazer voltarem à vida
As estátuas partidas
E caídas dos pilares marmóreos de Carrara,
Faltam pintores para devolverem
À vida
As grandes obras de arte deste vasto museu
Onde repousam esquálidos e tristes:
Picasso, Rembrandt, Ticiano,
Rubens, Da Vinci, Goya e outros
Que floreiam as paredes
Com pinceladas do céu!...
Faltam pombas errantes – e ruidosas
No pátio interno
Devorando o milho – e arrulhando
Fazendo brotar sorrisos
Do semblante mais taciturno e cálido,
Falta o guardião fiel
Para alevantar o pálio d’armas
Da família
E enobrecer o espaço de realeza,
Faltam mãos d’algum cavaleiro
Para polir as espadas – limpar as esporas
Vestir a armadura
E ir pros campos afora
A bater-se por seu Rei!
Falta o poeta solitário do alaúde
Embaixo das noites frias
Mostrando o seu amor à janela mais alta
Onde CÂNDIDA, a amada, adormece!
E ele canta e expõe a saúde
Às noites frias e chuvosas
Nessas ruas ermas e sem ninguém,
Faltam pés mimosos
Para pisarem o tapete da escadaria
Fazendo ringir, de leve, os degraus,
E descansar as mãos no corrimão
Empoeirado
Olhando a nostalgia do ambiente,
Faltam pavões de ouro(!)
No seu quintal de domingo
Onde jazem penas fulminadas
Do grande pavão real
Extinto por um raio
Numa noite fria, durante um temporal,
Faltam braços ágeis
Para puxar a água da cisterna
E colocá-la nos barris de madeira
Onde lagartixas passeiam – ligeiras
Balançando a cabeça no ar;
Falta gente para limpar os telhados
Desentupir as bicas
Para a água correr límpida
Transparente como cristal,
Faltam jardineiros para aparar as flores
Podar as árvores, aparar o mato,
Limpar os caminhos
Varrer as folhas secas
Desentupir as fontes
Onde dormitam dragões de pedra
Com as bocas de serpente fechadas,
Falta gente para limpar os degraus
Abrir as portas e janelas
Purificando o ar viciado
E por canções de primaveras
Nos salões senhoriais
Onde numa mesa negra
Jazem uma pena e um pedaço de papel
Com um início de poema
Que o ambiente completa
C’o u’a jarra de flores no meio da mesa
Sombria – descascada
E talos de flores transformadas em pó
Os quais enfeitam o papel como grânulos de terra...
Faltam peitos alegres
Para desabafarem os sentimentos existentes
Nos semblantes de retratos antigos
E fazer aflorar um sorriso
Espontâneo e belo
Iguais os de uma criança
Num amanhecer singelo
Conversando com os canários do jardim;
Faltam luzes de olhos virgens
Virgens... virgens...
Duma Virgínia loura qualquer
Para me tirar dessa penumbra louca
Que me acorrenta o sorriso na boca
E não me deixa ver as bananeiras
Do quintal lá de casa,
Onde, envoltas num véu de neblina,
Até as palmas dos coqueiros parecem
Querer lascar o ventre da lua
Que repousa sobre esse céu de rotina...
Faltam lenços brancos
Para enxugarem as torrentes de pranto
Que descem dos meus olhos verdes
Escorrendo sobre o meu rosto
Solitário e tristonho
Igual a palidez do sol – que agoniza
Lento
Por trás de uma chaminé velha e entupida
De matas, ervas e meus sonhos de Papai Noel,
Do meu tempo de menino
Enraizado no meu destino
Lírico e infantil de poeta...
Falta calor de versos
E sons de música sacra
Dos negros... sublimes – da velha África
Com o tocar quente e sanguíneo
Dos seus belos candomblés!
Falta matar o medo
Para tirar o tabu
Desta casa ensombrada por tristezas
Onde a única beleza que existe
É a solidão da Sinfonia do Mozart
Deixada languidamente sobre o piano
Onde à noite os ratos passeiam
Fazendo soar as suas teclas
Negras e cor de manteiga.
Falta a luz fimbrácea da lua
Filtrando pela claraboia
E iluminando o salão
Fazendo arder – os cristais e lustres –
Nos olhos parados
Das fotografias indiferentes
Penduradas com incerteza
Umas aqui, outras acolá;
Faltam mãos de moças
Para limpar os tapetes, remendar
Os furos
E tirar do obscuro
Os desenhos sutis...
Faltam concubinas nos quartos, desnudas,
Com os seios róseos
E rijos... coçando
Roçando...
De gozo
Quando a borboleta da boca
Vai ali pousar
E apertá-los entre dentes
Fazendo exaurir o leite da vida
Brotando no peito uma ferida
Duma mordida louca e quente
Tal o sexo sendo devassado
Entre dores... sorrisos...
E gemidos loucos de desabafo
Enquanto os corpos oscilam
Num ritmo louco – duma dança
Alegorizada e erótica – do sexo,
E suspiros voariam cálidos
Mergulhando nos hálitos
E as bocas fechariam hermeticamente
Num beijo
Que tudo lasca, morde e arranca gemidos
E sangue
Entre soluços leves de gozo e dor!
Mas falta!... falta!... não tem! (porra!)
Faltam donzelas e princesas
Nas janelas mais altas
Olhando a paisagem
Sustentando a vertigem com coragem
Para olharem as belezas do infinito,
Falta quem se embriague
Com o Vinho do Porto
E escancare sorrisos nos rostos
De pedra
Das estátuas partidas
Ao chão,
Falta quem meta o pé
Nos chinelos de seda
E passeie a casa toda, sem ruídos,
E conheça os desejos
Dos quartos, das camas,
E das paredes que falam segredos
Ocultos
Atrás das portas fechadas.
Falta quem sente nas poltronas
Para fazer tricô
Ou ninar os pequenos
E contar-lhes estórias
Ou contasse da glória
Dos Reinos dos Céus!
Falta quem costure as redes
E mate a sede
Das plantas, das avencas,
Dum jardim de domingo
Onde passeiam as garças, os cisnes,
Onde o músico afinou o seu violino
Onde o poeta
Concebeu um verso muito fino
Que ali mesmo morreu de emoção,
Falta quem vá limpar os leões
De pedra
Da escadaria
Estátuas instintivas
Do medo qu’eu tenho
E trouxe dum ventre
Que foi minha semente
...depois de fecundo...
Perdi sentimentos
Pois a cada momento
Minh’Alma transforma-se
Num monumento de cimento
No espaço cinza que me cerca
Que me acoberta
E me agoniza a vida
De falta de amores
Onde só vejo a solidão, nostalgia,
Pingando igual ao sereno
Nos telhados dos meus cabelos
Empoeirados
E embaraçados tais teias de aranha
Que me fecham, acompanham,
Por todo os lugares onde passo
Até que vire esfinge
Nesse deserto desolador,
Onde não há sequer ar puro
Para respirar,
A não ser poeira seca
Entupindo-me os pulmões
Fazendo-me espirrar partículas de cálculos
Átomos da pedra
Que acabam de partir os cristais;
Não há uma tarde com música de cigarras
Nem o cantar pachorrento
Dos grilos – à noite -
Só o silêncio
O silêncio pesado e escuro
Igual ao próprio telhado
Que me cobre
De sonhos antigos e indefinidos
Porque eu não compreendo
O poemas das paredes rachadas
E tijolos que aparecem – vermelhos –
Enquanto que outros
Descolam e caem
Formando aquela montanha informe
De argila
Inexplicável
Que me aniquila – me alucina –
E me coloca confuso
Igual ao próprio Confúcio
No seu oratório dourado
Dentro do quarto – num canto –
Por onde florescem ervas azuis
Que eu não conheço
Mas não esqueço
Daquele sorriso confucionista
Com os dentes de ouro!...
Há pedaços de papel soltos pelo chão
Trechos de livros inacabados
A pena seca junto ao tinteiro
Vazio
E um borrão de tinta
No tapete grená – espelho da cólera –
Onde adormecem sapatos usados
E calções desbotados – usados do mijo –
Falta um pouco de sobriedade
Nas pesadas portas escuras
E sombrias
Feitas de bronze
Cheias de gonzos e desenhos orientais
Onde repousa u’a serpente
E mais serpentes
Num pagode esmaecido,
E segredos jazem escondidos
Por trás das portas
Onde se notam sacolas cheias
De cartas
Desbotadas pelo tempo – roídas de baratas –
Como documentos valiosos
Em meio a tanto troféu invalido
E válido
Porém indignos de uma canção bela
Dum alaúde afinado...
As folhas secas
Atapetam o quintal
Aonde passeiam as cobras coloridas
Igual a uma manhã de carnaval
E as folhas sempre se mexem – elas deslizam
Esguias e ágeis
Entre os arbustos novos
Onde estão os ovos da pomba
Que arrulha doida no terreiro
Uma sublime canção de terror
E desfalece e logo morre
Como um saco de penas
Caído ao chão,
Enquanto outras cobras
Dilaceram as suas entranhas
Tudo... tudo
Numa monotonia estranha,
Iguais às estrelas numa noite sem céu
Onde existem anáguas e podres vestidos
Num guarda-roupa escuro
No qual habita u’a família de ratos;
Faltam carinhos de mãos se encontrando
De peitos novos unindo-se decentes
Para desencantarem o mistério existente
Nesta casa, que me engoliu,
Qe me vestiu
Com as suas tristezas
Com as suas cruezas
E suas fraquezas estranhas
E maravilhosas
Como chapéus usados
Pendurados em cabides
E roupões de lã lascados
Usados pelos ratos – ao solo –
Onde eu piso e esfolo
Os meus pés nos pregos
Nas dobras dos tapetes
E nos ladrilhos soltos da cozinha
Onde está um pilão usado
Com uma farinha também usada – quase pó –
Sinônimo de milho pisado
E panelas esquecidas ao fogo
Talheres enferrujados nas pias
De mármore
E louças estaladas da frieza
Que quando as toco – esfacelam –
Entre os meus dedos;
Afora isso, a lenha no fogão,
Comida para cupins - seculares –
E u’a tocha apagada
Presa à parede – esfumaçada –
Como um emblema
Ou símbolo da noite!
Lá... naquela casa vazia
Onde deixei a minh’Alma
Com ela
E a minha calma
Exauriu-se em gritos de desespero
Quando quis afinar o piano rouco
E este desabou sobre mim
Fazendo expirar suas teclas negras
E cor de manteiga
Em meio à multidão
De cupins famintos
Que devoraram num ímpeto escarlate
O velho manuscrito
Do mestre Wolfang Amadeus Mozart,
Única lembrança palpável
E suave
Que me restava daquela casa
Velha e sombria
Onde eu deixei em prantos
Morrendo de agonia
A minh’Alma – acabando-se em saudades –
E eu... e eu... NÃO MATERIALIZADO
E impuro
Sumi no escuro
Da porta mais próxima!
(Escrita na cidade de Amélia Rodrigues-BA, antiga LAPA, na noite de 07 de Março de 1974, por TADEU BAHIA, aos 23 anos de idade).