Esta é a minha história...
“Fumu nu umbigo é bão”
Na Catalão dos anos sessenta,
na Catalão das entradas e bandeiras,
dos homens de armas
e dos cavaleiros e padres...
Três dias depois do natal de 1965,
nascia eu para uma vida singela,
numa casinha simples
cercada de roça de milho.
No meu quintal,
tinha um rego d’água e um pé de carambola, onde um bem-te-vi,
infalivelmente,
alegrava as minhas manhãs.
Era uma fazendinha típica
do interior de Goiás,
Município de Catalão.
Foi a mulher parteira
quem me arrancou
do aconchego daquele útero;
considero-a, até hoje,
uma verdadeira carrasca.
Meu pai carpia chão,
minha mãe socava pilão.
Meu pai pedia chuva,
minha mãe pedia não.
Meu pai calos nas mãos,
minha mãe na alma;
reclamava de tudo.
Meu pai,
sem acompanhamento de qualquer
instrumento, entoava algumas modas
caipiras.
E eu, imaginava os cenários
das estórias das músicas.
Era o menino caçador que foi morto pela
onça feroz,
que mesmo ferida vinha na fumaça...
E eu, imaginando a mata,
o bicho, o ataque e a morte do guri.
Era feliz além da conta e nem sabia.
Era assim o lugarejo
alegre da minha infância.
Espairecia eu afogando
pintainhos no rego d’água,
montando a cavalo,
fugindo de vacas,
atravessando pinguela
e socando os irmãos.
Vivia feliz correndo a toa,
de pés no chão.
Cresci assim:
sem vídeo game e sem aula de inglês.
Não fiz natação, nem karatê,
nem assistia televisão.
Fui apresentado
a uma sessão de desenho animado
com onze ou doze anos,
mesma época em que
experimentei coca-cola.
Na época, minha droga predileta.
Mesmo assim era feliz.
Aos domingos arraial, amigos, avós,
almoços, futebol, brigas,
alvoroços e coca-cola...;
nas segundas-feiras,
mutirão para a capina.
Companheiradas a limpar
roça de milho e feijão.
Às dez horas em ponto,
sentados nos barrancos,
nos calcanhares ou no cabo da enxada,
comiam arroz, macarrão,
galinha ao molho
preparada em fogo à lenha
e panela de ferro.
Que saudade!
- Daquele tempero e daquele tempo.
Quando chovia à tarde,
pescava lambari, lobó
e outras tranqueiras no córrego.
Era o êxtase da vida.
Naquele tempo,
não invejava nem o Presidente americano.
Aliás, nem sabia que existia a América.
Não sabia da copa
nem que o Brasil já era tri-campeão
mundial de futebol.
Era tanta ilusão
e distanciamento de tudo,
que nem sabia
que no Brasil os militares
haviam tomado o Poder.
Que AI-5 que nada,
pensava somente em matar
pássaros com o estilingue
e banhar-me no poço azul
que havia nos fundos da minha casa.
Censura e repressão
no meu mundo não havia.
Porão, somente debaixo da minha
casa assoalhada e não servia para nada.
Tortura maior que eu conhecia
era somente quando meu pai matava
porco ou frango para saciar a nossa fome.
AI-5 era simplesmente a forma
errada de dizer cinco ais,
de quando era surrado
pela minha mãe,
nada mais.
Andava quilômetros até a escola,
não tinha biblioteca nem livros,
nem diretora ou merenda.
Era um professor sozinho
que vinha da estrada de chão vermelho,
montado numa bicicleta velha.
Tinha, porém,
cuidados de sobra
com aqueles meninos-bichos.
E, como que por milagre,
ainda conseguia lhes ensinar
algumas coisas.
Alguns mais aventureiros,
no futuro tentariam até ser escritores,
relatando às vezes, a própria história
do mestre e seus pupilos.
Os vizinhos. Ah! esses eram umas figuras.
Tinha o Tunico baixinho,
irmão do Zeca lelé
que era irmão do Antônio ladrão.
Tinha o Eurípedes e seu filho Astério,
que para qualquer dorzinha
vinha logo a receitar:
“fumu nu umbigo é bão”.
E tinha gente que acatava
esse remédio esquisito,
se curava, até hoje não sei.
Meus pais,
que jamais deixaram faltar-me o básico,
dando-me sustento, carinho,
senso e responsabilidade,
viram crescer um homem comum,
prático e responsável,
forjado nas dificuldades,
curtido nas virtudes
e nos exemplos que teve.
Lapidado pela vida
não deu brilho forte,
também não se ofuscou,
nem tão pouco se dilacerou,
simplesmente vingou;
vingou,
simplesmente.