Poema do Envelhecer - Gil Bertho Lopes
Junto à cama desfeita, a presença de um velho, insone...
Um tosco embrulho empilhado de travesseiros,
de xales cinzentos com quadrados,
cobertores ásperos e felpudos;
Bafio de velhice tímida e desfeita,
na inércia de quem, dentro em pouco, completaria noventa e oito anos.
O rosto sim, um tanto murcho, mas não a alma.
Nos silêncios infinitos de sua alma, um alvoroço tão grande de sentimentos, não como uma riqueza propriamente sua, mas do mundo.
Fazia dois anos que perdera o corpo todo,
macerava-se à espera do último momento.
Uma fantasmagoria de imagens, de recordações,
como num relâmpago de um furacão, tumultuava-lhe o espírito.
Apertou o lábio a fim de impedir uma explosão de soluços,
mas as lágrimas lhe jorraram dos olhos.
Esquecido completamente daquilo que tinha sido durante tantos anos,
entregou-se ao pranto qual uma criança.
Escondeu o rosto com as mãos, prorrompendo em soluços.
As pálpebras se inflavam
e as lágrimas pingavam grossas e espessas pelas faces encovadas.
Uma infinita ternura emanava daqueles olhos,
que teriam sido bem bonitos,
assim negros,
se as pálpebras, por baixo, não se houvessem despregado,
exibindo o róseo morto das conjuntivas e
descendo com as olheiras e as faces na cavidade da horrenda deformação.
Olhos parados, aguçados,
num mudo espasmo, que parecia devorar-lhe o rosto abatido e pálido,
com aquela barba de vários dias...
As mãos se levantavam para acariciar os cabelos,
como se os cabelos desejassem a carícia daquelas mãos.
Suspirou, mas talvez, sem querer.
Não tinha motivo algum para suspirar.
A resposta veio da janela, silenciosamente.
Sentiu um calafrio de ternura em todas as fibras,
Sentiu o quarto todo inundar-se de um delicioso e inebriante perfume,
que subia do jardim que rodeava a casa.
Virou-se, e viu um raio de luar no soalho, que era como um traço luminoso
na sombria penumbra do quarto.
Corpo e alma se encantaram...
Tinha chegado a primavera!