REABRINDO A ADEGA
Nessa tardia colheita
Amasso bagos rubis,
Encho tinas e barris
Numa adega já desfeita.
Vejo jorrar espremido
Na adega soerguida
Meu passado ali vivido
Em brutal ânsia fremida.
E no forjo dum gemido
Trago a prensa arrochada
Para o tempo ressequido
Feito uva já passada.
Sobre a tábula retinta
Por botelhas derramadas,
Repriso a vida aos trinta
No tombar das madrugadas.
No porão umedecido,
Dentre a cesta e o carvalho,
Vejo o mosto adormecido
Na entrância do assoalho.
Ali, só, dependurada
Na coluna torta e bruta,
Em vão símbolo de luta:
A tesoura enferrujada.
Um tramar de teias gris,
Confundindo aos meus cabelos,
Não ouviu os meus apelos
De voltar onde eu não quis.
A velha taça quebrada,
Sobre um caco colorido,
Tinha um lábio imprimido
Duma deusa embriagada.
Dos abris - colheitas findas,
Ouço vozes, cantorias,
Foram tantas alegrias,
Das lembranças, as mais lindas.
Na adega da minha vida,
Nos barris em abandono,
Velhas marcas do “eu” dono
Vem-me às vezes doloridas.