LEMBRANÇAS BIZANTINAS

LEMBRANÇAS BIZANTINAS

WILLIAM LAGOS (OUT 2011)

COROMANDEL

COROMANDEL I (23 out ll)

Chegou o momento das recordações.

Vejo as nuvens em pilhas de algodão;

durante a noite, almofadas de tição,

pouco me resta a lembrar dessas tensões.

Quente viagem, longa e sem paixões,

assentados de permeio à multidão,

adormecida do aeroplano no salão,

enquanto eu cato piolhos de ilusões...

Atrás de mim, alguém teve um ataque,

provocado pelo excesso de calor:

por um momento, quase o invejei...

Meu coração batendo, em atabaque,

pela loucura desse condicionador,

mas vi a ironia e então me controlei...

COROMANDEL II

À minha frente, uma mulher trazia

uma criança de berço, que chorava

e meus farrapos de sono atrapalhava,

enquanto o povo a meu redor dormia...

E nos momentos em que um pouco conseguia,

a comissária vinha e atrapalhava,

com refeições que eu nem sequer buscava,

ou atenções a que recusar eu preferia...

Também à frente, uma pequena tela

mostrava meu percurso digital,

alívio único para meu desconforto...

Os contra-alíseos assoprando feia vela

nas costas da cadeira, que era, afinal,

imagem falsa de meu espaço morto...

COROMANDEL III

Até que enfim se completou essa viagem

e foi a busca intensa das bagagens.

Se aqui for pobre a rima das imagens,

mais pobre foi o meu rito de passagem...

Os aeroportos decretavam avassalagem,

nos corredores infinitos, com mensagens

contraditórias ao longe, mas sem pajens

que nos mostrassem os pontos de triagem.

Não era a Meca, mas foi peregrinação

pelos caminhos sem fim e indiferentes,

até um trem tivemos de tomar!...

Sem que mostrasse real indicação,

acompanhando ao terminal outros presentes

talvez diverso destino a demandar...

COROMANDEL IV

Num descaso total do passageiro,

esse imenso aeroporto tumular,

a altura de DeGaulle a superar,

pobres formigas encarando sobranceiro...

Até chegar à esteira, em que ligeiro,

ficavam nossas malas a jogar,

pouco ligando a seu danificar

e novamente o calor vem, por inteiro...

E me ensopa a camiseta e a camisa,

enquanto puxo malas por rodinhas,

certamente melhor que antigas alças...

Minha própria mala pequena em nada pisa,

trocada por essas malas de rainhas,

a imaginar, quiçá, recepções falsas...

COROMANDEL V

O tempo dos poetas é diverso

desse tempo que entretém gente comum.

É diferente também do tempo algum:

é o brevelongo tempo de meu verso.

Portanto, o recordar é mais disperso,

pois na viagem, não escrevi nenhum

e se os dato agora, é que o assun-

to realmente corresponde ao dia terso,

em que corremos pelos corredores,

que para isso servem, certamente,

no falso mármore a que meu pé se apega,

nessa busca de pelourinhos constritores,

alagado de suor, incontinenti,

mas que posso fazer, se a noite é cega?

COROMANDEL VI

Fico a pensar em viagens mais antigas,

esses veleiros indo até Coromandel,

sem ar condicionado e sem quartel,

para banhos, abluções e outras intrigas...

Contudo, o vento lhes soprava doce mel

e embora as ondas balançassem inimigas,

as tábuas do convés em breve amigas

se tornavam, mesmo a água sendo fel...

E tantas coisas ouvi desse passado,

sei quais imagens posso hoje esperar,

que a tais destinos místicos nem parto...

Bem confortável em meu casulo alado,

que me permite à imaginação voar,

nesta "viagem à roda de meu quarto"...

SANDRIGO

SANDRIGO I (24 OUT 11)

Em Istambul, uma nossa companheira

perdeu as malas, deixadas para trás...

Nesse descaso que a companhia traz,

não nos surgiram nunca sobre a esteira...

Premonição decerto derradeira

que a avisou, talvez, que nesses lás,

por essa vez, não encontraria a paz,

que havia intrigas e a inveja costumeira...

Ficamos largo tempo no aeroporto,

eu sentado, cuidando das bagagens,

minhas familiares saíram a fumar...

Enquanto a outra, em sala sem conforto,

empreendia a sua busca com coragem,

sem sua mala conseguir localizar...

SANDRIGO II

E não queria o guarda do aeroporto

à minha esposa de novo permitir

que entrasse, para me substituir:

pitar cigarro parecia outra viagem!

Queria que passasse o desconforto

de uma nova revista, outra triagem,

qual transportasse granada na bagagem

e o imenso prédio quisesse destruir!...

Foi necessária a intervenção do guia,

Hassan Enki, a quem muito agradeço,

antes que ao prédio retornar pudesse.

Pois só depois que me substituiria

eu poderia localizar, com meu apreço,

tal bagagem mais perdida que uma prece!

SANDRIGO III

Fomos depois levados pelo guia

até um hotel, de nome venerado,

pois Venera certamente era chamado

e tratamento bom se recebia...

Tomei o banho que já tanto queria,

prestei tributo a Caco, já cansado...

Já era tarde e o sono perturbado

foi por exótica e bela gritaria...

Pelas seis da manhã, um muezim,

seu chamado eletrônico ampliado,

se pôs a convocar fiéis à prece...

Nessa cidade de ocidental jardim,

em cujo povo fracamente islamizado

a proteção de Alá ainda desce!...

SANDRIGO IV

Alegava o hotel ter quatro estrelas;

o café da manhã era excelente;

ofereceram banho turco à gente

e instalações de spa para as donzelas...

Naturalmente punham preço nelas,

seriam extras bem caros, claramente.

Eu não buscava artifícios, certamente,

são as mulheres que anseiam ser mais belas

e acreditam que tais coisas ajudam...

A mim bastava olhar pelas janelas,

pelas quais via anúncios luminosos,

figuras digitais, que sempre mudam,

quase antes que se possa percebê-las,

enquanto os carros se moviam silenciosos.

SANDRIGO V

Foi a coisa que me chamou mais a atenção,

esses veículos quase a se tocar,

que quase nunca se ouvia buzinar...

Só os megafones alertavam a multidão,

quando de novo na almenara estão

os muezins, mais uma prece a convocar.

Que coisa incrível esses carros a ocupar

o espaço inteiro e sem contestação!...

Ninguém gritava para pedir passagem,

apenas ocupavam o lugar...

Mais tarde vi, para meu divertimento,

que os transeuntes ali também se engajem,

pelas ruas, sem nunca se empurrar,

mas avançando em constante movimento...

SANDRIGO VI

E nas calçadas havia escadarias

conduzindo a ocultas aberturas...

Vasta ameaça em noites mais escuras,

possíveis quedas ao longo dessas vias!...

Assim se abriam, junto às paredes frias

e lá no fundo, sob luzes duras,

filas de roupas, mas que por loucuras

só em atacado adquirir podias!...

Só mais tarde descobriram novas lojas,

em outras ruas já um tanto afastadas,

em que a venda peça a peça era normal.

Enquanto nas primeiras já te enojas

pelas ofertas mil sendo mostradas,

nesse comércio sem nada de oriental!...

CORDAS DE AREIA

CORDAS DE AREIA I (24 OUT 11)

Istambul é uma cidade de muralhas,

que foram com cuidado derrubadas...

Ou descuidadamente restauradas,

para darem a impressão de mais antigas...

Istambul é a cidade das intrigas,

mil facções em pelejas digladiadas,

mil rancores por cem pequenos nadas,

grossos caibros a desfazer-se em maravalhas,

nesses restos de torreões que ainda vemos,

às vezes só uma esquina sobranceira,

outras vezes extensões de longos panos,

com velhas casas que nelas contemplemos...

E se não tocam as buzinas, é por que a areia

não se espalhe a provocar maiores danos...

CORDAS DE AREIA II

Istambul é um caso único na Terra,

uma cidade a abranger dois continentes,

uma cidade de multidões frequentes

na goela aberta com que a todas ela encerra.

Istambul já de há muito não vê guerra,

vistas lançadas para os ocidentes,

frouxas raízes ainda nos orientes,

em que a Ásia se esvai e a Europa emperra...

Já os sultões o queriam ser da Europa

e tinham os Bálcãs inteiros conquistados,

sendo detidos às portas de Viena,

mantendo vastas terras sob a copa

dessa árvore frondosa que condena

os ortodoxos a serem dominados...

CORDAS DE AREIA III

Mas todas essas são cordas de areia,

ergástulo e prisões para turistas...

Nessas ruínas, fantasmas não avistas,

nem sequer um fogo-fátuo se incendeia...

Em Hágia Sófia a sabedoria não se ateia,

não é mais do que um museu de gastas vistas.

Em Hágia Irene a paz dessas conquistas

é a paz dos mortos em sempiterna ceia.

Até as crianças são bem disciplinadas,

em longas filas sob um guia prepotente

a lhes mostrar o passado com rancor...

E elas percorrem as salas intrincadas,

enquanto os anos passam, alegremente,

como crianças num escorregador...

CORDAS DE AREIA IV

Contudo, na amplidão desses jardins,

elas sorriem e acenam cordialmente,

para esses rostos da estrangeira gente,

vinda do mundo inteiro a seus confins.

Vejo a frescura clara dos jasmins

nesses rostinhos, europeus inteiramente.

É muito rara a criança, realmente,

que algo de asiático mostre nos seus jeans...

Afinal, a Turquia vem dos berços

de outras dezenas de civilizações,

são hititas, panfílios, nicomedas,

são mísios, lídios, e bitínios tersos,

jônios e frígios, em grandes multidões,

macedônios, capadócios, persas, medas...

CORDAS DE AREIA V

Houve tempo em que das turcas os cabelos

se espalhavam ao vento, alegremente;

mas hoje é o Islamismo restringente

e assim reprime de muitas os desvelos...

Mas de todas as turistas posso vê-los,

e para muitas ainda, a prepotente

exigência da shariya é indiferente:

não é o Islã que assim imprime os selos.

Isso é mais imposição sacerdotal

e os pés cobrimos dentro das mesquitas,

com invólucros azuis de frio plástico...

Sem dos pisos o desgaste ser fatal,

pois dos mosaicos as preservadas fitas,

não são de areia, porém cordas de elástico...

CORDAS DE AREIA VI

E nisso tudo o que mais chama a atenção

é como o povo demonstra semelhança,

desde os velhos, até qualquer criança,

sem destoar essa inteira multidão

da gente de minha terra... A vastidão

geográfica é só de areia a trança

e até a vegetação traz à lembrança

de nossas árvores a verde brotação...

E vejo a hera sueca nas muralhas,

igual à que plantamos no jardim

e mil bordos imensos e altaneiros

e mesmo os prédios, de parelhas falhas

e o brilho desse olhar lançado em mim

é o mesmo que me lançam brasileiros...

BYZANTIUM

BYZANTIUM I (25 OUT 11)

Mas não somos o que viram realmente,

nem realmente vimos deles o que foram.

Nossas imagens são ventos que descoram,

Nossos reflexos são vidro e Sol ridente.

Há gatos em Istambul. Constantemente

encontramos com eles. Nada imploram,

mas tampouco se escondem. Ali moram,

acostumados com a mais estranha gente.

Porém os cães são de fato bem mais raros,

até escutei alguém que perguntasse

se turcos comem cães, como os chineses...

E nosso guia lhe mostrou um de seus claros

olhares de rancor, qual se indagasse

se eram canibais seus camponeses...

BYZANTIUM II

Santa Sofia se quedou desfigurada,

na irreverência de tantas multidões,

contaminada por tais exalações,

a maioria dos afrescos desbotada...

Em seus redondos broquéis é ensinada

a sabedoria que provém dos alcorões,

mas há mosaicos a cair, constelações

de velhas tésseras vazias de alvorada.

Sua rampa, porém, ainda é encantada,

naquelas lajes de quina arredondada

pelos pés de peregrinos seculares,

pedras macias, penitência de milhares,

líquida pedra, pela mágoa preservada

de tantos olhos desfocados para o nada!

BYZANTIUM III

Santa Sofia, santuário dessacrado,

só nessa rampa preserva a santidade.

São poucos os que a galgam, na verdade,

só os penitentes e a juventude airada.

Ou os poetas de peito iluminado,

os peregrinos de toda a humanidade,

que nesses cantos pingaram sua vaidade,

muito mais pura que a contrição fanada.

Só dessas pedras me olham os fantasmas

que desvendaram já tantas virilhas,

na vã contemplação de órgãos sexuais,

ingenuamente escondidos em miasmas,

arredondadas fendas que essas ilhas

congregam em arquipélagos mortais...

BYZANTIUM IV

O que nos mostram nessas excursões

são apenas armadilhas de turistas.

Ergue o Grande Bazar as velhas cristas,

deglutindo sem pudor as multidões.

Os corredores não levam a salões,

mas a covis de espertos prestamistas,

tudo te vendem, bastando só que insistas

que o preço é caro até para ilusões.

Aqui dominam a pechincha e a barganha:

quem aceita qualquer preço é desprezado;

até perguntam quanto se quer pagar...

E sua blandícia chega a ser tamanha

que as mãos te beijam, com olhar vidrado,

sabendo que no fim vão te enganar!...

BYZANTIUM V

Tampouco aqui eu encontrei fantasmas,

embora os meus deixasse para trás.

Nenhuma alma aqui encontra a paz,

são mil reflexos a costurar miasmas.

Seu comércio tem abismos, neles pasmas;

diariamente se achega Satanás,

no fim da tarde... e a colheita faz:

leva amarradas as ilusões que orgasmas

para qualquer inferno requintado,

moeda falsa desses mercadores,

ânsias vazias de mil vazios amores...

Cordas de orgulho se vê por todo lado:

vermelho estofo das cores nacionais,

luas rasgando os seus órgãos genitais...

BYZANTIUM VI

E nas praças se acumulam vendedores

de todo o tipo de quinquilharias:

vendem postais, moedas, porcarias

para os turistas, sorrindo seus rancores,

enquanto fingem cordialidade em flores,

mas cospem pelas costas zombarias,

virado o rosto, pensando que não vias,

voraz vingança de tais espoliadores!...

Quase nada comprei nessa excursão,

apenas meia dúzia de cedês,

um chapéu turco, somente dois piões,

enquanto as liras me corriam da mão,

de tal forma escabrosa, que nem vês,

rumo aos esgotos de tantas gerações!...

ABISMO INVERSO

ABISMO INVERSO I (25 OUT 11)

Neste recinto à sabedoria votado,

mas totalmente secularizado,

não há sinais de religiosidade.

Gira apenas uma turba de turistas,

ovelhas a seguir as bandeirinhas,

que por entre as cabeças ainda avistas,

se delas, empurrando, te avizinhas...

Não sobra espaço para ver mosaicos,

nem esses santos de rostos arcaicos,

por entre a massa de tantos transeuntes.

Seu altar-mor não se consegue perceber

e muito menos rezar nesse recinto,

embora os cantos a fizessem estremecer,

na velha imagem que na mente eu pinto.

Está a cúpula ainda no lugar,

nenhum assalto a pôde derribar,

nem sequer algum raio ou terremoto.

E se dobro meu pescoço para cima,

o firmamento para mim se inclina

e na vertigem a mente mal atina,

faz-se invertida e quase se reclina.

ABISMO INVERSO II

É como se este chão sob meus pés,

com seus desenhos intrincados nos sopés,

se invertesse e se tornasse o teto.

A cúpula me suga em sua voragem

e o Pantocrátor lá de cima espia,

a comparar minhalma a essa imagem

da perfeição que nunca se cumpria.

Eu quero então subir, cortar os ares

que me separam dos celestes mares,

das mil estrelas da sideral abóbada.

E, por instantes, até penso que consigo,

mas a balbúrdia a meu redor me chama

e permaneço em pé no meu jazigo,

sem ascender à glória que conclama.

Mas se estivesse só, o que haveria?

Veria os popes em longa cantoria,

a celebrar a eucaristia grega?

E a multidão dos velhos bizantinos,

que nunca foram constantinopolitanos,

arrebatados pelo tanger dos sinos,

para esses páramos quase sobre-humanos?

ABISMO INVERSO III

É isso que eu queria, realmente,

retornar ao passado intermitente,

ser mais um nessa fervente multidão.

Quem a cúpula atraiu, ano após ano,

quem ascendeu aos céus através dela,

nesse santuário quase hierosomilitano,

em que a respiração se torna estela.

Também queria os tempos de mesquita,

ver essa nova multidão bendita,

por um monoteísmo irremediável.

Considerando blasfema uma trindade,

que tem vértices no céu e sobre a terra,

que é semi-humana, em sua divindade,

à qual o Islã declara a Santa Guerra...

Lá das arcadas contemplam as mulheres

tantos homens dedicados aos misteres,

nos exercícios de sua meditação...

A que não as admitem, de inferiores...

Somente os homens encostam as cabeças

nesses pisos de ladrilhos de mil cores,

os pés lavados das culpas mais espessas...

ABISMO INVERSO IV

Porém não vejo esses sonhos do passado

nesses broquéis recurvos, de esverdeado

louvor sincero ao poderoso Alá!...

Já não passa esse santuário de museu,

pisam-no incréus, vindos da Terra inteira,

sacralidade que de estéril já morreu,

peregrinação ateia e interesseira...

Que nem sequer aprecia a arquitetura,

nem velhos ícones de beleza pura;

de fato, retiraram a iconostase

e a maioria dos símbolos sagrados;

caíram lances de tésseras na umidade;

ficaram espaços em branco, dessangrados

pelo carbônico vapor da humanidade...

Santa Sofia, que nunca foi mulher,

sem popes ortodoxos sequer,

tem minaretes, porém sem muezins...

O que fizeram de ti, caranguejeira,

que lá de fora pareces dar um bote,

para teu ventre encher por vez primeira,

vazio assim do sagrado convescote...?

ABISMO INVERSO V

Naturalmente, há áreas proibidas

a estas vastas maltas comprimidas

por entre os flashes das fotografias...

Todo o sagrado vai sendo captado,

todo o passado vai sendo consumido,

cada fantasma já foi desespelhado,

cada segredo há muito perquirido...

Só imagino o trabalho desses anjos,

tangendo bandolins, tocando banjos,

para afastar dali a poluição!...

Querem pecados e não indiferença,

que todos mudariam, com sua graça

e acenderiam, pela força de sua crença,

em penitências de incenso e de fumaça...

Mas o que observam é essa gente alheia,

cuja fé nem por instante se incendeia,

só estão ali para fotografar!...

Para dizer depois aos conhecidos,

aos parentes, até mesmo aos inimigos:

"Estive aqui! E aqui somos contidos

no abraço digital destes abrigos!..."

ABISMO INVERSO VI

Pois lá não foram a arte contemplar

e nem sequer para a fotografar,

são ovelhas arredias em rebanho...

E assim ondulam, girando num browniano

movimento, sem sentido ou direção,

cuidando mais fixar seu rosto humano

que esses símbolos da antiga religião!

Levada a sério ela foi por bizantinos,

de roupas pobres ou de trajos finos,

congregavam-se aqui em irmandade.

Com suas questiúnculas e perfídias,

amando mais a retórica que a ideia,

mas conciliando, na rede das insídias,

uma fé verdadeira de epopéia!...

Quem saberia dizer o que as paredes

firmes, silentes, que hoje ainda vedes,

serão capazes agora de guardar...?

Talvez se ergam tão só na fé antiga,

talvez sejam tão somente pedra fria,

talvez esperem por seu divino auriga

e só despenquem no derradeiro dia!...

HIPÓDROMO

HIPÓDROMO I (26 OUT 11)

Do Hipódromo pouco ou nada sobrevive.

O interesse dos turcos pelas bigas,

ainda menor do que pelas quadrigas,

nunca de fato se desenvolveu...

Não existiam mais carros de guerra,

seus cavaleiros dominavam toda a Terra,

logo surgiu a força dos canhões,

de um só golpe destroçando multidões...

Assim, em breve entrou em decadência,

pedras usadas em novas construções,

as estátuas demolidas nas paixões

despertadas pelo ensino do Alcorão

nesses recém-conversos muçulmanos,

esfaceladas nove estátuas dos romanos,

desse Porfírio, um hábil condutor,

em consequência inútil do rancor...

Depois, acabou todo soterrado

e por séculos já nem sequer lembravam

dessas corridas que ali se realizavam,

tão apreciadas por seus antepassados...

Até que Rüsten Duyuran, sábio arqueólogo

ao passado convertido, antes geólogo,

obteve do governo a permissão

e realizou uma vasta escavação.

HIPÓDROMO II

Hoje é a Praça do Sultão Ahmet.

Ali bem perto está a Mesquita Azul,

do mesmo nome, no centro de Istambul,

e eis logo a Fonte do Kaiser Wilhelm,

construída em 1900 em louvor

de uma visita desse Imperador,

toda em estilo neo-bizantino,

seu arquiteto foi o velho Constantino...

Porém do antigo hipódromo romano

somente restam os seus três obeliscos,

desenterrados de seus velhos apriscos,

os séculos de entulho em que dormiram!

Um deles é a Trípode de Plateia,

que de Delphos foi trazida, pela ideia

de Constantino, com suas ordens tersas:

comemorava a vitória contra os persas...

É chamado de Obelisco das Serpentes;

a taça de ouro por que era coroada

foi-lhe na Quarta Cruzada arrebatada,

só ficaram as três cabeças serpentinas...

Eram mostradas nas velhas miniaturas,

representadas em suas minúcias puras,

mas no século dezoito, ainda arrancaram

as pobres cobras, que a seguir esfacelaram.

HIPÓDROMO III

O segundo é realmente um obelisco,

Teodósio o Grande é que o roubou do Egito.

Fê-lo serrar em três partes, com o fito

de transportá-lo pelo Mediterrâneo.

Por um motivo ou outro, só montaram

a parte superior e a conservaram,

até hoje, bem no centro dessa praça,

fonte de orgulho a egípcia desgraça...

Foi o Obelisco de Tutmés Terceiro,

erguido em homenagem a vitórias,

comemorando já esquecidas glórias,

aqui instalado em Trezentos e Noventa,

após manter-se dois mil anos em Karnak,

erigido ao som da flauta e do atabaque

e ainda se encontra perfeitamente conservado,

bem protegido e melhor mumificado...

O clima é totalmente favorável

e ainda se ergue, em plena majestade,

sobrevivendo a tanta humanidade,

mesmo que esteja a um terço reduzido.

Talvez recorde com saudade o som

dos velhos hinos cantados para Amon...

Porém o Egito também é islamita:

não mais adora o Sol que ainda o fita!

HIPÓDROMO IV

E finalmente chegamos ao terceiro,

esse que chamam pelo nome Constantino,

que não refere o mais famoso bizantino,

mas Constantino Porfirogeneta.

O sétimo do nome, que escreveu

sobre os Petchenegues, que muito combateu,

que após mandar tal obelisco construir,

de placas de bronze fê-lo revestir...

Mas o bronze tinha sido revestido

de esmalte de ouro e foi assim roubado,

na Idade Média, pelo Exército Cruzado,

que achou longe demais Jerusalém...

Mas era forte sua estrutura interna,

feita de pedra, certamente não eterna,

mas que até hoje permanece erguida,

mesmo após toda a depredação sofrida.

O que no Hipódromo mais chama a atenção

é, contudo, a multidão dos vendilhões,

avidamente a espoliar as multidões

desses turistas que vêm de todo o mundo.

Mal dão espaço para ver os monumentos,

moscas humanas, em todos os momentos,

sendo por isso esse obelisco bem cercado,

antes de cada pedacinho ser roubado!...

EXPRESSO DO ORIENTE

EXPRESSO DO ORIENTE I (26 out 11)

Houve um dia em que, tomadas de cansaço,

preferiram ficar as duas no hotel,

esposa e filha; e foi na noite, justamente,

que nos levaram a jantar nessa estação

ferroviária a guardar o antigo traço

do Expresso do Oriente, exatamente

na parada que encerrava essa excursão.

Mantinha ainda a decoração antiga

o velho restaurante em que Poirot

foi colocado por Agatha Christie

e refilmado a cor e em branco e preto.

(Ninguém assassinou qualquer amiga;

de certo modo até me senti triste,

pela ausência de um enigma secreto...)

É claro que eu poderia ser suspeito

e as prisões turcas têm má reputação...

Mas limitei-me a assassinar minha sopa.

Também meu peixe triste me fitava,

porém não vi no seu sabor defeito,

nem no raki servido na minha copa,

enquanto a companhia reclamava...

EXPRESSO DO ORIENTE II

Os pratos nos chegavam em carrinho,

locomotiva em seu formato saudosista,

com chaminé para o vapor e até farol,

porém a única fumaça que subia

era a da sopa trazida com carinho,

ainda quente, qual raio de sol,

tanto quanto aquele clima permitia...

Havia uma fonte, bem elaborada,

construída com pedras, qual presépio,

reproduzindo uma cena do passado...

Mas, na verdade, apenas disfarçava

a descida até a cozinha, pela escada

e o acesso do banheiro, mais ao lado...

Será que aqui o Rei Guilherme se aliviava?

Bem certamente existem marcas nos esgotos

de Agatha Christie e de Pierre Loti,

que antes de criar a ambientação

de "Aziyadê", veio a estudar também.

Pelas paredes as mais variadas fotos,

embora algumas tão só reprodução

desses atores que a memória ainda contém...

EXPRESSO DO ORIENTE III

Foi nessa noite que adquiri passagens

no carro-leito para Sófia, na Bulgária.

Para meu desaponto, só noturna

era a viagem para tal país!...

Mas comprei mesmo assim, porque bagagens

já me causavam impressão soturna

e enfrentar outro aeroporto já não quis...

Há uma longa extensão na plataforma,

que avança talvez meio quilômetro.

Fontes de pedra para bebedouro,

os prédios todos fechados nessa hora.

Marchei até o final, na noite morna,

para ao menos conhecer o logradouro.

Rodeei o último poste e vim-me embora...

E novamente procurei fantasmas...

Não os achei ao ar livre ou na balbúrdia

do restaurante, com tantos comensais.

A fachada do prédio ainda em reforma,

os aerossóis expulsaram os miasmas,

comprei alguns folhetos comerciais

e logo a van para os hotéis retorna...

EXPRESSO DO ORIENTE IV

Vi alguns trens chegando à plataforma,

iguais a quaisquer outros europeus;

são trens elétricos de umbilicados fios.

Nada restava do aroma do carvão,

o conjunto da engrenagem já não torna,

tudo coberto por esses painéis frios

de corrugado alumínio sem paixão...

Busquei em vão as lanternas mais antigas,

não encontrei relógios ou semáforos.

O guichê mantinha horários digitais...

E sabendo ser meu turco insuficiente,

pedi ao guia de maneiras tão amigas

que presidisse às démarches naturais,

na aquisição do ingresso pertinente...

A outro século queria ter voltado,

que mais não fosse durante a meia-noite...

Mas ai de mim! Saí de lá cedo demais...

Não me perdi nos salões em Art-Nouveau

e assim confesso que fiquei desapontado,

pois queria era embarcar-me no jamais

e o trem do antanho nem ao menos apitou!...

O CHIFRE DOURADO

O CHIFRE DOURADO I (27 out 11)

De Bizâncio certamente não há ruínas,

foi totalmente demolida sob as sinas

das ordens imperiais.

Essas que existem são de Constantinopla,

e tudo quanto é descrito nesta copla

não lhe pertence mais.

Existem de Teodósio ainda as muralhas,

de Constantino as palaciais mortalhas

e igrejas mortas.

Mas do porto de mar de antigamente,

resta talvez um alicerce indiferente,

de pedras tortas.

Quiçá se encontrem no mar os velhos ossos

dos pescadores ou, no fundo de alguns fossos,

carcaças de navios.

Restos de mastros, talvez, antigas bilhas,

enterradas no lodo, já em estilhas,

passados desafios.

Quiçá fantasmas, lá no Chifre Dourado

ainda espiem, com seu olhar gazeado,

à luz do pôr-do-sol.

Metáfora de um corno, totalmente,

ondas brilhando sob a luz do Oriente,

em crepúsculo e arrebol.

Fantasmas de fantasmas, nada mais,

reflexos perdidos no jamais

do antigo paganismo.

Seu Posêidon já de há muito abandonaram,

Nereu e suas Nereidas se afastaram,

perante o Cristianismo.

O CHIFRE DOURADO II

Ainda existem as cisternas desse antanho,

algumas permanecem no tamanho

dos velhos memoriais.

E guardam água nos seus velhos dutos,

suplementando o fluir dos aquedutos,

de ruínas triunfais.

Ainda se vêem os velhos calabouços,

mas de Blaquernas só restam os esboços,

já bem dilapidados.

E das casas que os antigos habitavam,

sem a glória dos palácios que miravam,

só há traços isolados.

Tudo que existe é constantinopolitano,

aquilo que deixou o gênio romano,

tingido em bizantino.

Ao redor desses vestígios há escadas,

podem galgar as pessoas mais airadas,

em desafio ao destino.

Eu escutei a voz da companheira

e não galguei à Anemas altaneira,

talvez por covardia.

Ou por prudência, quem sabe por cansaço.

Só foi minha filha a receber o abraço

do vento que zunia.

Mas eu não fui e estranha nostalgia

a minha alma recobre, na ironia

de não ser imprudente.

Os meus fantasmas talvez soprasse o vento

e uivassem cantochão no ouvido atento,

nas ameias do Poente.

O CHIFRE DOURADO III

Ainda ali está o Patriarcado,

Ortodoxo, sem ter sido condenado

por ordem do Sultão.

Embora seja a maioria muçulmana,

a própria shariya não chega a ser tirana

da antiga comunhão.

Ali se encontra a Igreja da Panágia,

contém ainda a Fonte de Hagiasma,

sua água benta.

Ainda existe ali o Hágion Lousma,

aberto às vezes ao banho de uma chusma,

que com ele se contenta.

São Salvador de Chora hoje é museu

igual que a Hágia Sófia, e ali morreu

o antigo monastério.

Famoso pela vasta biblioteca,

pelos afrescos de sua pinacoteca

e seu Eremitério.

Pantocrátor é um conjunto de mosteiros.

"Tudo Governa o Senhor", desde estrangeiros

a ortodoxos fiéis.

Zeyrek o chamam turcos; há um hospital,

um asilo, uma capela funeral

e túmulos de reis.

Pammacaristos de Santa Maria,

Zoodocos Pege e os peixes d'ouro que trazia

de seu milagre antigo.

E São Sérgio e São Baco, amostra pura

da mais legítima bizantina arquitetura,

dos mosaicos o abrigo.

O CHIFRE DOURADO IV

Diante do Bósforo, a fortaleza de Rumeli

não se abre ao público, mesmo que se apele

para ver o interior.

A Igreja de Metal se ergue em Balat,

de Santo Estêvão o Búlgaro, do combate

celebra ainda o valor.

Não me agradou o Bazar de Especiarias,

na confusão de aromas, fugidias

suas contas vivas.

E só acompanhei, sem entusiasmo,

essa excursão pelo oriental marasmo,

cores esquivas.

Dele não trago sequer recordações,

só o vento junto à porta e as sensações

leves que foram.

Mil vezes preferi o arsenal de prata

e a elevação da Torre de Galata,

que os djinns douram.

Na verdade, será justo confessar

que foi a Apolo que tive de apelar

a orientação.

Pois certamente ele foi canonizado

e como novo santo entronizado,

com devoção.

Mas outros versos sei de mim esperam...

São Baco e Dionyso não quiseram

soprar nenhum...

E desses deuses antigos destronados

ouvi apenas ressonares compassados,

sem canto algum.

ASLAN

ASLAN I (28 OUT 2011)

Os palácios e as mesquitas de Istambul,

em sua realidade altissonante,

não foram realmente o que esperava.

Só vi por fora essa Mesquita Azul,

talvez por dentro seja deslumbrante;

achei simpático o prédio que se alteava,

com seus mosaicos.

Fabricados em Iznik, já famosos,

na opulência dos seus seis minaretes,

a única a ostentar tantos no Islão.

Seus alpendres exteriores são formosos,

revestidos de miríade de confetes

e os rendilhados de cunho cristão,

bastante arcaicos.

Já a Mesquita de Rysten Paxá,

projetada por Sinan, o arquiteto

de Suleiman o Magnífico, tem graça

tipicamente islâmica e lá está;

Beira o Grande Bazar, tão indiscreto,

o maior souk do mundo, junto à Praça

do Sultão Ahmet.

Rysten Paxá era só o Grão-Vizir

do grande Suleiman, mas fez erguer

essa grande estrutura por piedade,

conforme seu constante proferir,

mas seu motivo para tanto dispender

não mostrava devoção e sim vaidade,

que Alá o aceite!...

Sentado em banco junto à lateral,

vi, no entretanto, a cena comovente

desses fiéis lavando mãos e pés,

após o rosto, antiquíssimo ritual,

observado há séculos pelo crente,

decerto herdado de mais antigas fés

do velho Oriente.

Existe aquela fila de torneiras,

com assentos dispostos a intervalos.

Descalçam os sapatos, tiram meias,

lavam-se bem na água, quais ribeiras

e se calçam novamente, sem regalos.

Por que sujar os pés noutras areias

do chão ardente?

Mas o bando de turistas e infiéis

não é aceito na hora da oração.

É uma honra partilhar de tal segredo,

são aos crentes reservados tais farnéis.

Que aguardem estrangeiros no portão!

De um fiel mendigo vale mais um dedo

que os reis descrentes.

E permanecem assim, sob as arcadas,

sem pedir bakshish, porque é proibido...

Só vi em Istambul uns três pedintes:

duas velhas com seus dentes desfalcados

e um garoto, sorridente e atrevido,

insistindo em receber, com mil acintes,

nossos presentes.

ASLAN II

A Mesquita de Eyip é a mais garrida

e contém a sacra tumba do sultão

do mesmo nome, que foi porta-estandarte

do Verdadeiro Profeta, na investida

que pelo mundo difundiu o Islão

e aqui morreu, lutando por sua parte,

Eyip El-Ensari.

Quando tentaram tomar Constantinopla,

do século sétimo ainda ao decorrer.

Bordos antigos e pombos nessa praça...

É o terceiro mais sagrado, diz a copla,

dos santuários do Islão a percorrer,

após Jerusalém e a imensa graça

que em Meca paire.

Em Miniatirk se veem as miniaturas

de otomanos e mouriscos monumentos,

de todo o mundo que abrange o Islamismo,

emolduradas por essas rochas duras,

albergando os mais antigos sentimentos

de santuários do próprio Cristianismo

de antecessores.

E de permeio aos belos dioramas,

ainda se veem representações humanas,

judeus em sinagogas, cavaleiros,

vendedores de flores (e de chamas),

bizantinos a usar togas romanas,

ferroviários, popes e guerreiros,

velhos senhores.

Existem mais centenas de mesquitas,

porém fechadas a todos os descrentes.

O plástico a envolver os seus sapatos

não impede que dessacrem frases ditas.

E não gostam sequer que estranhas gentes

olhem de fora para tais recatos:

rompem as preces.

E Alá não ouve os rogos que lhe fazem,

é preciso começar tudo de novo.

Mas a cidade é bem mais cosmopolita,

dedicada ao comércio que lhe trazem,

aos lucros dos turistas para o povo,

que a teu redor, com avidez, se agita,

se às praças desces.

E nos museus escondidos nas mesquitas,

mostram-se armas de soldados otomanos,

suas armaduras e, em três dimensões,

um ator convocado de suas fitas,

para vestir-se qual em antigos anos,

às escondidas a zombar das multidões

de mil viagens.

Noutro museu há condecorações,

as comendas, coroas e turbantes,

um conjunto de jóias valiosíssimas,

e lá no meio de tais ostentações,

esse que chamam rei de todos os diamantes,

lapidado de suas gangas antiquíssimas,

em fiéis clivagens.

ASLAN III

Porém nada seus palácios me despertam,

em neoclássico estilo de imponência,

nem otomanos, nem tampouco bizantinos,

somente cópias que ao Islão desertam,

belos exemplos de arquitetural sapiência,

imitando de europeus os desatinos

sem majestade.

Como museus, certamente têm valor,

mostram milhares de lustres e jarrões,

vindos da Europa, da China e do Japão,

mais um retrato de ínclito esplendor

da Rainha Victoria, que vastidões

do mundo inteiro dominava então,

em austeridade.

Em Beylerbeyi Sarayi há dois leões,

guardando a entrada, bem autoritários,

contra turistas mal-intencionados.

O Salão Mavi comporta multidões,

contidos gestos mais atrabiliários

por postes e festões bem colocados.

Que nada quebrem!

Há centenas de degraus em escadarias,

mas não se pode tocar no corrimão,

nem se pisar na beirada dos tapetes.

Por que recebem em suas alvenarias,

por que lhes abrem à visitação,

por que lhes mostram haréns e gabinetes,

se eles se atrevem?

São as colunas de estuque revestidas,

parecidas até com escariola...

E a andar tão depressa precisamos

que não há tempo que sejam percebidas

marchetarias com que o forro se enrola,

por entre afrescos que nem observamos

pois nos apressam.

Estão chegando já outras excursões,

os estudantes demonstram disciplinas,

passarinhos em uniformes escolares,

contendo assim suas manifestações,

abafadas no veludo das cortinas,

entre os mármores de sonhos tumulares,

que ver não cessam.

E os guardas, soturnos em seus ternos,

que nem sabem, talvez, o que é sorrir,

nos contemplam com ar reprovador.

Meus galhofeiros espíritos internos,

estimulados por seu vesgo perquirir,

decididos a reagir com mais vigor,

fizeram-me tocar

nas superfícies de lustro proibido,

nas maçanetas lembrando camafeus

e nesse estuque azulado e de mau gosto.

Ninguém me repreendeu por incontido:

deixei a marca destes dedos meus

nesses lugares em que os havia posto,

só por zombar!...

ASLAN IV

Não nos levaram para o túnel ver

nem a piscina de Sari Koshqui,

mas lá se ergue Dolmabáhtche também,

com suas fontes de cisnes a verter.

Yeditepe, contudo, eu nunca vi,

mas seu sopé ainda avistei, porém

só da janela

dessa van que nos levou até a ponte,

para cruzar ao outro continente.

Por breve instante a Ásia visitei...

(Talvez seja melhor que até nem conte.)

Vi a Torre de Leandro ao sol poente,

onde Hele se afogou, mas nem cheguei

a ver sua estela.

Contudo, fui até o Topkapi...

Mais salas e tapetes, mais escadas,

esses quadros pelos longos corredores,

mas que apenas de passagem entrevi.

Não dava tempo, nas marchas apressadas,

em que turistas ofegavam estertores,

seus pés em dores.

Houve excursão ao longo desse mar

chamado Mármara Denizi, mas de fato,

foi apenas pelo Bósforo e o Dourado

Chifre, o turco Halítche, a navegar.

Sobre o Mármara não houve real contato

nem o Mar Negro foi tampouco navegado,

por maus pendores.

Duas barcas de egípcias enfeitadas,

cozinhas permanentes sobre o mar

e as fileiras sem fim dos pescadores,

sobre as pontes, recobrindo as amuradas,

as longas linhas parecendo velejar,

nesse velho festim dos moradores,

vastas miragens.

E outras pessoas, ansiadas por vender

roupas de couro, valor inflacionado,

um rapaz e duas moças os modelos,

sem o lucro conseguir satisfazer

com este grupo pouco endinheirado,

endividado até os seus cabelos

pelas passagens...

E enfim, na bela loja de tapetes,

o proprietário até falava português...

E se esforçou a mostrar o seu estoque,

um após outro, superpostos leques.

Até inclinei-me a tornar-me seu freguês,

mas como iria levar tapetes a reboque

por meia Europa?

Mas realmente, o que me comoveu,

foi um DVD a mostrar banda marcial,

que só assisti uns quantos dias depois...

Tive saudades do que não aconteceu,

de ver Constantinopla ao natural,

de ter Bizâncio só para nós dois,

qual vinho em copa...

ISMARLADIK! GUILEGUIL!

ISMARLADIK! GUILEGUIL! I (29/10/11)

(Até logo! Boa viagem!)

Como tudo na vida, há um momento

de se abanar o lenço, em despedida...

A gente espera, como pagamento,

que nos abanem o lenço na partida...

Mas nada aconteceu. Após a lida

dessa bagagem, em seu embarcamento,

não tive adeus, nem foi cantiga ouvida,

sobre o cimento frio do pavimento.

Os companheiros de viagem ficariam

por mais dois dias e somente nós,

durante a noite e quase às escondidas,

sobre as rodas dos vagões que se moviam,

partimos juntos, da Bulgária empós.

Ficou a Turquia para trás em nossas vidas.

ISMARLADIK! GUILEGUIL! II

Ficamos sós nesse compartimento,

Bem à direita desse vagão-leito,

a que aplicaram excessivo aquecimento

e o cabineiro abusou de seu direito.

Mas como à sua mercê me vi sujeito,

paguei-lhe uma gorjeta em tal momento.

Pequeno roubo, mas por mim aceito,

para livrar-me de seu mau procedimento.

Eu já pagara pelos seis lugares

e o trem só se ocupara pelo meio,

mas colocar alguém mais ameaçou.

E eu queria manter meus descansares,

sem que mais me incomodasse de permeio

e minhas dez liras assim ele levou...

ISMARLADIK! GUILEGUIL! III

Antigamente, era costume se aplicar

o "bastinado" ao corrupto funcionário:

davam pancadas nos pés do salafrário,

para o Império melhor administrar...

Mas surgiu logo o costume de pagar

a algum mendigo um certo numerário,

mais um suborno para o real erário

e o infeliz apanhava em seu lugar!...

Mas o que eram, afinal, essas dez liras?

Correspondiam a somente dez reais,

duzentos dólares a viagem me custara...

E na esperança de melhores giras

(é meia lauda de tradução, não mais),

paguei a peita que me solicitara...

ISMARLADIK! GUILEGUIL IV

Adeus, Bizâncio! Adeus, Constantinopla!

Para trás deixei a sombra de Istambul,

esse Mar Negro cor de mar azul,

esse Mercado louvado em tanta copla!

Allaha, Sultanahmet Camii!

Adeus, Mesquita Azul!...

A cada dia, um novo restaurante,

um de manhã e outro pela noite,

cada local em diferente acoite,

nenhum cardápio foi muito interessante.

Allaha, fontes douradas!

Adeus, Seis Minaretes!...

Em um conjunto de cartões postais,

trouxe duas folhas sopradas pelo vento.

Já me apresentam castanho integumento,

leves vestígios dos verdes naturais...

Allaha, Misir Dikilitashi!

Adeus, Obelisco que furtaram!

Os hieróglifos permanecem claros,

sob sua base se vê a vegetação.

Quatro pilares lhe dão sustentação,

de Tutmés relembra atos preclaros...

Allaha, mil mosaicos!

Adeus, velhas arcadas!

Aos minaretes conduzem patamares.

Será talvez a idade do muezim

que mais embaixo o faz ficar assim,

ou cantam coros em todos os andares?

Allaha, automóveis silenciosos!

Adeus, quatro pontes para a Ásia!

Mesquita Azul, com ladrilhos multicores,

que não são feitos somente de arabescos,

das frases do Alcorão, em rituais riscos:

aqui se mostram mil folhas e flores...

Allaha, porta do Oriente!

Adeus, ruínas ao nascente...

Em alguns trechos da muralha havia moradas,

numas poucas, até roupas nos varais,

outras vazias, janelas fantasmais,

renques de hera escorrendo quais escadas...

Allaha, vendilhões das praças!

Adeus, comerciantes de mil raças!

O interior da mesquita é deslumbrante.

Não dei porém ali sequer um passo.

Não sei por que me negaram seu regaço,

talvez outra excursão passasse adiante.

Allaha, cem mosteiros!

Adeus, Cristo Pantocrátor!

É um castiçal a Coluna Serpentina,

mas lhe cortaram há muito seu morrião...

Veio uma fonte desde o Império Alemão

e em suas colunas negras se reclina...

Allaha, Hágia Sófia!

Adeus a Hágia Irene!...

Não dou adeus à rampa bizantina,

porque trarei bem dentro ao coração

essas pedras desgastadas que aqui estão,

único elo com meu sonhar divino...

Allaha, Rysten Paxá!

Adeus, Topkapi!

O vento frio embalsamava a excursão

sobre as águas do estreito e ofereciam

café e chá... Mas logo me pediam

bem alto preço pela dessedentação...

Allaha, Dolmabáhtche!

Adeus, Forte Ruméli!

Adeus, guardas de uniformes imperiais,

suportando essas fotos dos turistas,

adeus aos mármores que no jardim avistas...

Não se proíbe representar os animais?

Allaha, Yeditepe!

Adeus, Patriarcado!

O Palácio de Tekfur não tem telhado,

de suas paredes quase nada resta...

Qual é a estrela que de noite encesta

os seus raios de luz desde o outro lado?

Allaha, Panágua de Blaquernas!

Adeus, Museu de Kariye!

Da verdadeira cidade eu vi apenas

os calabouços que bem poucos visitam.

Lá das ameias mil guerreiros fitam

e montam guarda os mortos em Anemas!

Allaha, velhos bordos...

Adeus aos pinheirais...

Não nos levaram ao velho cemitério

com fragmentos de ossos dos judeus,

com lápides de vetustos nazireus,

seu musgo a entoar kaddish etéreo...

Allaha, Neve Shalom!

Adeus, sinagoga de Ahrida!

Foi para aqui que vieram os Sefardim,

expulsos de uma Espanha intolerante,

igual que foram os mouros doravante:

quinhentos anos já alcançaram o seu fim.

Allaha, Otomanos!

Adeus, novos Turcomanos!

Algumas casas têm Estrelas de David,

outras indicam imigrantes turcomanos.

Ainda chamam os gregos de romanos,

como se nunca tivessem-nos aqui...

Allaha, Torre de Galata!

Adeus, Torre de Leandro!

Na Ilha do Príncipe, desde antigamente,

carroças cruzam as ruas de pinheiros.

No passado, até seus dias derradeiros,

Vinha o Sultão nos verões, alegremente...

Allaha, Tughra do Sultão!

Adeus, crescente e estrela!

Foi bem na época da festa nacional,

bandeiras rubras de espírito patriótico,

em todo o seu flutuar, já semiótico,

desse passado defunto e triunfal!...

Allaha, mamelucos!

Ismarladik, eunucos!

Allaha às eras priscas...

Ismarladik às odaliscas,

Allaha, grãos-vizires,

Ismarladik a todos os emires!

Que te direi, enfim, Constantinopla?

Que te amei, sem saber o que tu eras?

Que não te amei, após tantas esperas?

Que fiquei indiferente ante tua copla?

ISMARLADIK! GUILEGUIL! V

Porque sei bem que a culpa é toda minha.

Eu que aceitei te programassem como escala

de uma viagem de mais comprida gala

e meu olhar depressa se amesquinha...

Assim, fui infiel, na comezinha

espera de escutar diversa fala...

O pouco turco que aprendi não cala:

um novo nicho abriu, nele se aninha...

Trago comigo a poeira... Não lavei

meus pés para ingressar em tuas mesquitas.

Trago comigo a zoeira que escutei,

essa babel de vozes de turistas

e a verdadeira Istambul jamais achei,

para ceder o coração às suas conquistas...

ISMARLADIK! GUILEGUIL! VI

E o que trago de lá? Frases quaisquer,

num arremedo de turco mal cozido,

palavras soltas, vocabulário desnutrido,

que mal e mal serviu a seu mister...

Euro ne kadar? Quanto é, em Euro?

Tchok pakali! É muito caro!...

E nem ao menos me soltei a pechinchar,

as minhas parentes barganharam em inglês!

Pacheminas e jóias, por sua vez,

paguei minhas contas, sem nunca protestar...

Guináydin por "bom dia",

Merhaba para "alô"!

As crianças me saudavam em inglês

e eu respondia com minhas frases soltas

e nesse repetir, em tantas voltas,

descobri várias palavras em francês!

Mersi podia ser "obrigado",

por Gar se referia a estação

e com Pardon me podia desculpar!...

Embora melhor fosse o "Ederim"

ou "Tetchelnur", para pedir perdão.

"Affedersiniz", com igual conotação,

mas esse achei mais complicado, enfim...

Iyi aksham lar! para Boa Noite!

Iye guesselar! Boa Noite também é...

Uma vez na entrada e outra na saída,

"Iyi' significa "bom" ou "bem";

com "Iyi yim" a gente diz: "Vou bem"

e um "Arkadash" é amigo para a vida...

Com "Birchei" se diz "não há de quê"...

Com "Lítfen" se pede "por favor"...

Mas é melhor "Tereshkírer" se falar,

quando se quer a alguém agradecer...

"Baylan ode nerede?" quer dizer,

"Onde é o banheiro?", caso precisar...

"Uzak uldúgu?" Será que fica longe?

"Bit yakim!" Fica bem perto...

Não precisei ir a qualquer delegacia,

tivemos sorte, ninguém nos assaltou...

"Nerede polis istasyonu" se escutou:

Se precisasse, até que eu já sabia!...

Para "sim" se diz "Evet",

Para "não" se diz "Hayir"...

Não encontrei odalisca a me iludir,

Não aprendi como de amor falar,

no máximo aprendi a perguntar,

se por acaso precisasse perquirir,

Como é seu nome? Adiniz ne?

O meu é William, ou William Adim.

Ou Adim William, parecia sobrenome.

Que tivesse um avô turco iam achar

e quem sabe? até mesmo perguntar...

Quem diz "Allaha" para o além se some...

Com Nasil sini? indagaria "Como vai"?

Caso fosse entabular conversação...

Mas nunca houve, para tal, momento:

estava sempre pelo guia acompanhado,

se encontrasse turistas a meu lado,

melhor usar o inglês no tratamento...

Istemiy Orsaniz! Não quero isso!

Te acalma, vendedor, não sou freguês...

Sempre aprendi a dizer isto ou aquilo,

pois "isto" é "bu" e "aquilo" se diz "su"

e para "o outro" basta dizer "nu",

mas não tive ocasião para segui-lo...

"Ruim" é "fená",

"Feio" é "tchirquim"!

É bom saber, para comprar quaisquer

artigos nos bazares apinhados,

sempre é bom referi-los depreciados,

baixam o preço até o ponto que se quer!

Estou com fome! Bem susuz atchim!

Nerede lakanta? Onde é o restaurante?

Que quer dizer? se indaga Ne Demeque?

Não precisei de mais barato hotel,

mas seria "Nerede ocuz bique otel"?

Tampouco fiz qualquer salamaleque...

Chuveiro é "duche"

e banho é "banyo"...

Muito fácil de aprender, não é verdade?

Não há desculpas, com sinceridade,

para manter no corpo a sujidade,

nem por preguiça, nem por falta de vontade...

"Como? era "Cátche?"

e "quanto", "Cátche tane?"

Não precisei de dizer "Istiyorum",

porque, de fato, não queria nada...

mas se quisesse adquirir uma almofada

ou não quisesse comprar artigo algum,

para "belo", Guizel se diz aqui,

"quente" é Sicak, "grande" é Biyique,

"frio" é Soiuk, "pequeno" já é Qui chique!

"novo" é Yêni e "velho" é um Esqui...

Mas vou encerrar esse tema que escolhi,

ainda recordo umas palavras mais,

que não usei, nem vou usar jamais,

porque Yok, "não haverá ocasião"

e quando (Nezaman?) posso dizer aqui

Buyurunve! (Sirvam-se!), meus amigos?

Como (Nasil?) salvo nos dias antigos,

A quem (ou Quim?) farei recepção?

O que (ou Ne?) poderei oferecer?

Pois procurei quebrar o meu tabu

e entregar-me ao verso livre a olho nu

e terminei cem rimas pobres a escrever...

ISMARLADIK! GUILEGUIL! VII

E nesta noite, após sono perder,

acabei concluindo por soneto

as impressões de pendor pouco secreto

que consegui nesta viagem recolher...

Por brincadeira, ou quiçá escarnecer,

fui um pouco irreverente e sem afeto.

Mas bem queria que me fosse mais dileto

esse passado que não vi acontecer...

Queria ver os mamelucos em combate

e os janízaros de tão temida fama,

mais para trás, Belisário ou então Teodora,

mas só encontrei o que o turístico proclama

e me ofegou em vão a alma de vate,

ao embarcar na gare e ir-me embora!

Sem que ninguém me desejasse Guileguil!

William Lagos
Enviado por William Lagos em 18/12/2011
Reeditado em 18/12/2011
Código do texto: T3394518
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