ABISMO INVERSO & MAIS

ABISMO INVERSO I (25 OUT 11)

Neste recinto à sabedoria votado,

mas totalmente secularizado,

não há sinais de religiosidade.

Gira apenas uma turba de turistas,

ovelhas a seguir as bandeirinhas,

que por entre as cabeças ainda avistas,

se delas, empurrando, te avizinhas...

Não sobra espaço para ver mosaicos,

nem esses santos de rostos arcaicos,

por entre a massa de tantos transeuntes.

Seu altar-mor não se consegue perceber

e muito menos rezar nesse recinto,

embora os cantos a fizessem estremecer,

na velha imagem que na mente eu pinto.

Está a cúpula ainda no lugar,

nenhum assalto a pôde derribar,

nem sequer algum raio ou terremoto.

E se dobro meu pescoço para cima,

o firmamento para mim se inclina

e na vertigem a mente mal atina,

faz-se invertida e quase se reclina.

ABISMO INVERSO II

É como se este chão sob meus pés,

com seus desenhos intrincados nos sopés,

se invertesse e se tornasse o teto.

A cúpula me suga em sua voragem

e o Pantocrátor lá de cima espia,

a comparar minhalma a essa imagem

da perfeição que nunca se cumpria.

Eu quero então subir, cortar os ares

que me separam dos celestes mares,

das mil estrelas da sideral abóbada.

E, por instantes, até penso que consigo,

mas a balbúrdia a meu redor me chama

e permaneço em pé no meu jazigo,

sem ascender à glória que conclama.

Mas se estivesse só, o que haveria?

Veria os popes em longa cantoria,

a celebrar a eucaristia grega?

E a multidão dos velhos bizantinos,

que nunca foram constantinopolitanos,

arrebatados pelo tanger dos sinos,

para esses páramos quase sobre-humanos?

ABISMO INVERSO III

É isso que eu queria, realmente,

retornar ao passado intermitente,

ser mais um nessa fervente multidão.

Quem a cúpula atraiu, ano após ano,

quem ascendeu aos céus através dela,

nesse santuário quase hierosomilitano,

em que a respiração se torna estela.

Também queria os tempos de mesquita,

ver essa nova multidão bendita,

por um monoteísmo irremediável.

Considerando blasfema uma trindade,

que tem vértices no céu e sobre a terra,

que é semi-humana, em sua divindade,

à qual o Islã declara a Santa Guerra...

Lá das arcadas contemplam as mulheres

tantos homens dedicados aos misteres,

nos exercícios de sua meditação...

A que não as admitem, de inferiores...

Somente os homens encostam as cabeças

nesses pisos de ladrilhos de mil cores,

os pés lavados das culpas mais espessas...

ABISMO INVERSO IV

Porém não vejo esses sonhos do passado

nesses broquéis recurvos, de esverdeado

louvor sincero ao poderoso Alá!...

Já não passa esse santuário de museu,

pisam-no incréus, vindos da Terra inteira,

sacralidade que de estéril já morreu,

peregrinação ateia e interesseira...

Que nem sequer aprecia a arquitetura,

nem velhos ícones de beleza pura;

de fato, retiraram a iconostase

e a maioria dos símbolos sagrados;

caíram lances de tésseras na umidade;

ficaram espaços em branco, dessangrados

pelo carbônico vapor da humanidade...

Santa Sofia, que nunca foi mulher,

sem popes ortodoxos sequer,

tem minaretes, porém sem muezins...

O que fizeram de ti, caranguejeira,

que lá de fora pareces dar um bote,

para teu ventre encher por vez primeira,

vazio assim do sagrado convescote...?

ABISMO INVERSO V

Naturalmente, há áreas proibidas

a estas vastas maltas comprimidas

por entre os flashes das fotografias...

Todo o sagrado vai sendo captado,

todo o passado vai sendo consumido,

cada fantasma já foi desespelhado,

cada segredo há muito perquirido...

Só imagino o trabalho desses anjos,

tangendo bandolins, tocando banjos,

para afastar dali a poluição!...

Querem pecados e não indiferença,

que todos mudariam, com sua graça

e acenderiam, pela força de sua crença,

em penitências de incenso e de fumaça...

Mas o que observam é essa gente alheia,

cuja fé nem por instante se incendeia,

só estão ali para fotografar!...

Para dizer depois aos conhecidos,

aos parentes, até mesmo aos inimigos:

"Estive aqui! E aqui somos contidos

no abraço digital destes abrigos!..."

ABISMO INVERSO VI

Pois lá não foram a arte contemplar

e nem sequer para a fotografar,

são ovelhas arredias em rebanho...

E assim ondulam, girando num browniano

movimento, sem sentido ou direção,

cuidando mais fixar seu rosto humano

que esses símbolos da antiga religião!

Levada a sério ela foi por bizantinos,

de roupas pobres ou de trajos finos,

congregavam-se aqui em irmandade.

Com suas questiúnculas e perfídias,

amando mais a retórica que a ideia,

mas conciliando, na rede das insídias,

uma fé verdadeira de epopéia!...

Quem saberia dizer o que as paredes

firmes, silentes, que hoje ainda vedes,

serão capazes agora de guardar...?

Talvez se ergam tão só na fé antiga,

talvez sejam tão somente pedra fria,

talvez esperem por seu divino auriga

e só despenquem no derradeiro dia!...

ASTILBES FARFALHANTES I

Castro Alves, onde estás que não respondes?

Em que imundo purgatório tu te escondes,

Embuçado no astral?

Faz quatro dias te mandei meu grito,

para psicografar teu coração aflito...

Onde estás, mortal?

Eu não sei como se chamam estes versos

de ritmos estranhos, tão dispersos,

Cortados, afinal.

Mas eu quero ao mesmo ritmo escrever,

nestes versos que só parecem pertencer

ao teu caudal.

Assim, aguardo a escuta de tua voz,

desenrolada através de obscuros nós,

nas espumas do inconsciente.

E então te empresto a força de meus dedos,

para que contes a mim os teus segredos,

que sou paciente.

Há quatro dias surgiu-me tal ideia:

não busco ter aplauso da plateia,

só redigir

os poemas que deixaste de escrever,

pelo final prematuro do viver,

sem te afligir.

CORIMBOS DE AGAPANTOS I (9/11/2010)

Vou iniciar, portanto, outra batalha,

Enquanto o som é leve e a voz não falha.

No mesmo estilo.

Não sei ainda qual será a temática,

Nem de quem escutarei a voz enfática,

Dentro em meu silo.

Só sei que cantarei as lamparinas

Que vejo acesas nos olhos das meninas,

Enquanto pulam,

Na corda, no balanço ou amarelinha,

Enquanto os anos com que a vida se avizinha,

Sábias calculam.

Que a inocência infantil, que assim se espera

É uma falácia que a sociedade gera:

É mais pureza,

Na intensidade firme do propósito

De quererem para si qualquer depósito,

Pura certeza,

De que o mais importante é o próprio egoísmo,

Sem possuírem nem noção de um altruísmo,

Sem que se ensine.

Toda criança só busca o próprio bem:

Quer tudo para si e mais também,

Enquanto atine.

William Lagos
Enviado por William Lagos em 08/12/2011
Código do texto: T3378112
Copyright © 2011. Todos os direitos reservados.
Você não pode copiar, exibir, distribuir, executar, criar obras derivadas nem fazer uso comercial desta obra sem a devida permissão do autor.