Repousar traços inimagináveis...
Na quietude da minha cozinha,
Nesta manhã pasmaceira,
Que me recebe afável e tranqüíla,
Escolho feijões dos anos...
Descasco sementes e separo réstias...
Debulho e refogo pergaminhos,
Frituras entornadas no caldo da murrinha,
Fervo saudade e lembranças...
No caldeirão dos espinhos da idade,
No fogão a lenha dos meus caminhos,
Acendo brasas de incertezas e dúvidas,
Nas labaredas... que realinho...
Descanso a massa espessa no peso e na medida,
Dos meus olhos cansados e perdidos na vida;
Reservo... mantimentos... e quantidades,
E verto liquídos em recipientes guardados,
Na dispensa renhida do meu passado;
São reservas e proventos duma velha história,
Gota a gota e passo a passo, as recolho,
Ávida, pacientemente, lentamente...
No decorrer do (des) caminho...
Que ora debulho em tristuras e solidões...
Ao misturar sensações indigestas nas receitas do tempo,
Com a inefável certeza de ter vivido sob restos,
Pedaços, porções e pitadas de infortúnios...
Junte tudo isso... bem amassado... cozido, assado,
Flambado... no vinho bom... dos vinhedos,
Nos outeiros dos meus sonhos...
E, por favor, sirva com reverência e suntuosidade,
Numa tigela de prata - o alimento dos meus desterros,
Feito sobremesa no puro licor dos meus recolhos,
Refogos de saudade, descrença e velhos segredos!
E, bom apetite - no déjà vu - da consciência!