CALEIDOSCÓPIO 1-6 / DADOS VICIADOS 1-6

CALEIDOSCÓPIO I (16 abr 11)

(para Iracy e Mimosa Germano)

Antigamente, quando era menino,

tinha brinquedos que chamavam de "teteia":

eram caleidoscópios, com sua teia

de espelhos e pedrinhas coloridas...

Quando girava o tubo pequenino,

esses vidrilhos percorriam odisseia

e a cada movimento, nova aleia

se formava em suas imagens repetidas...

O fundo era de vidro e entrava luz.

E ali ficava, por horas entretido,

até que esse brinquedo era perdido.

O tubo se amolgava e então se abria,

quebrava o vidro que a mágica conduz

e toda imagem no passado se escondia.

CALEIDOSCÓPIO II

Tive várias "teteias". Em geral,

uma senhora me trazia do Uruguai,

em busca dessa luz que do olhar sai

de uma criança em êxtase final...

Mais tarde, essa magia artificial

busquei para meus filhos. "Contemplai,

por este óculo, uma visão que vai

a todos distrair sem fazer mal..."

Eu pretendia dizer, em minha vaidade

de partilhar o passado com o futuro:

cessou-me a busca em desapontamento.

Nunca mais vi "teteias", na verdade,

nem no comércio ou artesanato puro,

só sobrevivem no meu pensamento.

CALEIDOSCÓPIO III

E ao contemplar esta libélula pousada,

sobre uma poça, em tensão superficial,

de uma lâmina de água, fantasmal,

a gravidade como que anulada,

as quatro asas em imagem espelhada,

duas azuis, duas salmão, cor estival,

num movimento constante e natural,

na superfície sua beleza retomada,

em suavidade mansa como um leque,

um abanico de plumas e de seda,

sem receio qualquer de se afogar,

sem precisar sequer que as patas seque,

caleidoscópica memória então me enreda,

seus grandes olhos a me fascinar...

CALEIDOSCÓPIO IV

E ela me olha, em lenta avaliação:

são duas contas de fulgor arredondado.

O sentimento por mim foi emprestado,

mas me parece, em minha projeção,

decifrar nelas melancólica visão,

uma tristeza de teor atarantado,

vistas brilhantes, em suplício alado,

quase implorando por minha compaixão.

Mas mostra a boca dentinhos recortados...

Talvez o brilho seja só o do flash...

Tem uma mitra tricolor em sua cabeça.

Quiçá calcule os botes apressados,

enquanto o corpo inteiro mal se mexe,

salvo essas asas de textura espessa.

CALEIDOSCÓPIO V

E me contempla, com rosto de duende,

na mitra multicor, sabedoria.

Sacerdotisa de uma antiga orgia,

o longo corpo para trás estende...

E tal olhar mesmérico me prende:

ouço a mensagem que minha mente cria,

nessa insistência de minha desvalia

que a busca vã das fadas ainda atende.

Será mágico afinal o quadrialado

serzinho desprovido de pecado,

que, como um deus, caminha sobre o mar?

Ou vejo apenas miragem do luar...

Não há mensagem, apenas um enfado,

que já projeta essa libélula no ar...

CALEIDOSCÓPIO VI

Essa libélula é reflexo da vida:

sem o bater das asas, vai afundar.

Após molhada, não pode se safar:

é seu castigo por ser tão atrevida.

Bem no fundo de meu peito tem guarida

um coração, que bate sem parar...

Somente um susto poderá afetar

a ritmada percussão dessa batida...

Sem o pulsar do coração, porém,

há de cessar meu próprio atrevimento

de esvoaçar pelo mundo material.

E, qual o inseto, afundarei também,

deixado em verso só mais um pensamento,

para depois me dissolver em sal.

DADOS VICIADOS I (9/12/2008

Não esperava que este final de ano

aborrecido se tornasse assim.

Muito já fiz durante o ano, enfim,

sem resultar-me mais que desengano.

Soma-se a tudo o mais que desumano

calor que em nada serve para mim,

senão para amurchar o meu jardim

e despertar em mim verso profano.

E a todas essas, ela me dá carinho,

como não dava há anos, surpreendente

o seu afeto gentil e a sua paciência.

Será o preço a pagar? Que veja o ninho

desfeito ramo a ramo inconsequente,

queimado pelo gelo dessa ardência?

DADOS VICIADOS II (17 abr 11)

Por estranho que seja, não é a primeira

vez que isso comigo me acontece.

Esse inverso resultado de uma prece,

essa malícia que me surge derradeira.

Esse preço a pagar, flecha certeira,

sempre me surge quando bênção desce.

Uma fatura, talvez, que a teia tece

e um pagamento bem maior requeira.

É como se estivesse na balança

e num prato depusesse todo o amor,

ficando o outro a pesar prosperidade,

que a cada vez que mais valor alcança,

requer diminuição do outro vigor,

tal qual arcana contabilidade...

DADOS VICIADOS III

Já muitas vezes encontrei no outrora

isso que chamam de felicidade,

quando em amor se transforma uma amizade,

nesse prazer inesperado de uma hora.

Ao mesmo tempo, o dinheiro vai-se embora:

cessam as fontes da prosperidade.

A balança sente o peso da vaidade

e o peso do trabalho assim desdoura.

Então surge mais trabalho, mas o amor

escoa devagar... e sobe o prato,

muito mais raras as mostras de carinho.

Como se alguém sopesasse, em seu rancor,

o meu destino, sem permitir de fato

um incremento dentro em meu ninho.

DADOS VICIADOS IV

Mas não se trata, certamente, de justiça:

o efeito é muito mais de zombaria,

tal qual se meu guardião só ironia

demonstrasse pelo esforço de minha liça.

Sem respeitar a norma mais castiça

de que riqueza a gente mesmo cria,

pela força do labor em que se fia,

porém se atrasa a gente mais remissa...

Diz o ditado: "Ajuda-te a ti mesmo

e Deus te ajudará" -- pérfida ética.

Sei que trabalho bem mais que a maioria.

Não deveria, portanto, pôr a esmo

os resultados de minha dialética,

para ajudar a quem favor pedia...?

DADOS VICIADOS V

Será essa a lição? Que vire egoísta,

que me recuse a com os outros repartir?

Que buscar deva somente o meu porvir

e guardar para mim toda a conquista?

Que a cada outeiro de que galgar a crista

eu deixe para trás, sem permitir

que me acompanhe quem busca seu nutrir?

Que não exista lugar para o altruísta?

Pois ao redor de mim, vejo ambição,

a maioria aos outros explorando,

para poder a si locupletar...

E a mim enoja essa competição:

vou facilmente aos outros ajudando,

sem o menor retorno a lhes cobrar...

DADOS VICIADOS VI

Mas me rebelo contra este julgamento.

Não se trata de culpa, nem castigo,

de karma ou dharma sem qualquer abrigo:

eu só recebo a indiferença do momento.

A boa ação sempre traz um pagamento

na peculiar doçura que consigo

ou no amargor, quando a fazer me obrigo:

somente o mal não cai no esquecimento.

E assim eu sei que a balança me é infiel.

Ninguém me disse que o mundo seria justo,

nem acredito me atendam qualquer prece

que já não pretendessem... e que o anel

do arco-íris não compensa o alto custo

dessa enxurrada em que um amor perece.

William Lagos
Enviado por William Lagos em 22/04/2011
Código do texto: T2923663
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