EM PÁLIDO PAVIO & MAIS
EM PÁLIDO PAVIO
Eu só me exponho
numa aparência,
dessa impotência,
servo medonho.
Se falo em mim,
é o eu poético,
é o eu estético,
som auto-imune,
que cede e enfim,
sempre se pune.
Que assim me tome
tal vírus louco:
me afeta pouco,
mas por mim passa,
só me consome
é a tua desgraça.
O verso aceito,
sou infectado,
sempre marcado
na dor alheia,
no meu defeito,
que me incendeia.
PAPARAZZO
SÓ BUSCO A ORLA
DA VASTIDÃO DO VERSO,
ESTOU DISPERSO,
COMO UMA BORLA.
IGUAL QUE PENDE
SOBRE O CAPUZ,
FOGE-ME A LUZ
E ME DESLIGO:
A MENTE ESTUDA
LASCAS DE ABRIGO.
E SÓ TRANSCREVO,
NESSE LAMENTO,
MEU SENTIMENTO
DA INDIFERENÇA,
ENQUANTO LEVO
TAL MÁGOA INTENSA.
PAVIO DE VELA
FOI MEU REFRÃO,
MEU CORAÇÃO
FOI COMBUSTÍVEL,
MAS MINHA JANELA
É INTRANSPONÍVEL...
APENAS OLHO
O MUNDO E VEJO
QUE EXISTE BEIJO,
MAS NÃO PRA MIM,
QUE A CEIFA COLHO
DE UM ARLEQUIM.
VISLUMBRE
o tempo não volta atrás
(pelo menos, que se saiba).
talvez na ciência caiba
algum processo capaz
de mudar esta sentença,
num impulso de energia.
que não volte a adolescência:
são anos de malquerença
pela geral aparência...
mas enquanto não retorna,
vamos viver no presente,
pois torná-lo diferente
está sempre a nosso alcance:
basta dar "última forma",
quando a vida já nos canse...
mudar seu comportamento...
(como ensinar truques novos
a um cachorro... até povos
puderam mudar seu jeito.)
vai-lhe dar contentamento,
nem que perca um só defeito
mas mesclado de despeito,
na saudade desse alento,
que foi fiel companheiro,
por mais que fosse imperfeito,
e deixou buraco inteiro,
ao não causar mais tormento.
GILVAZES
Escarifiquei a mente e o coração
no anseio de ti. E me tornei
escravo, não de ti, do que pensei
pudesses ser, envolto na ilusão;
um véu de espumas os olhos me toldou
e imaginei que idônea fosses, companheira,
tal qual sempre busquei a vida inteira...
que amasses o que amo e que, também,
me servisses de apoio. E assim falhou
todo o meu julgamento, porque alguém
criei em mim, espírito ilusório,
alguém que me amparasse, em quem confiança
total depositasse e que bonança
me trouxesse à mortalha decadente;
há de existir tal ser fantasmagório,
porém não foste tu. Mordi o ausente
jantar de mágoas, em eterno malefício;
mas quando penso em ti, da noite ao meio,
abraço firmemente o devaneio
que existe em mim, mas nunca encontrei fora,
maquete feita em próprio benefício
para reconhecê-la um dia, aqui e agora.
ANGLING
It has been very long since I last
wrote a poem in English. Don't know
exactly why this happened. 'Twas so
and I just kept coming into incest
with my mother tongue. At best,
translated others' poems. Then I hoe
carefully around and never bow
to the easier solutions for my guest,
in love by my table. I just follow
his conversation, gestures, and talks,
but never play the servant to him.
That's my wont. To swim over the shallow,
I'll never wallow, proud of my chalks,
showing the feelings that I owe within.
ESQUECIDO, MAS FELIZ... (8 mar 08)
ESQUECERAM DE MIM, É O QUE PARECE,
OS MEUS ALUNOS DA TURMA DE INGLÊS UM.
SÓ ASSIM ME LIBERO DO FARTUM
E DEIXO PARA TRÁS A QUEM ME ESQUECE.
QUE ESQUECER É UM VÍCIO QUE PADECE
QUEM POR MIM JÁ NÃO SENTE BEM ALGUM.
NÃO FICAREI SOZINHO, SE NENHUM
SE APRESENTAR. E CHEGO A FAZER PRECE
QUE NÃO LEMBREM DE MIM OU QUE ACONTEÇA
NESTA NOITE DE CALOR, ATIVIDADE
QUE A TURMA TODA AFASTE HOJE DE MIM...
ESPERAREI SÓ O TEMPO QUE ME CRESÇA
NO CORAÇÃO MENSAGEM SEM SAUDADE
E QUE A CASA VOLTAR CONSIGA ASSIM...
latrocínio
atravesso a rua:
vejo o giralua,
meu coração estua
em tal alumbramento.
atravesso a nua
estrela que flutua,
tudo se insinua
em meu pressentimento.
atravesso a grua,
num olhar de pua
e quebro o juramento.
para que conclua,
verde-azul gazua
arromba o sentimento.
ENLEIO
as palavras me perseguem,
mansamente, loucamente,
ansiosas para sair,
velozmente, incontinenti,
sem terem real sentido,
totalmente, inutilmente,
mas todas elas pressionam,
na desmesurada mente:
e me tornam impotente
para conter esse urgente
fluxo doido, opalescente,
de azinhavre redolente,
de malícia inteligente,
de segredo impenitente,
das relíquias de um demente,
adorando o Sol nascente,
desnudando a Lua fremente,
fecundando estrela quente,
na maldade indiferente
destes versos, bruscamente,
lançados neste papel.
negaça
a chuva não cumpriu a promessa que me fez:
apenas relampiou,
depois tronou,
por trás das nuvens,
sem que sequer me mandasse chuveirada,
pois sobre mim pingou
sabores de salsugem:
o mar nos ares, em plena insensatez,
vi nessa noite de lua afugentada,
que o vento trouxe o cheiro e a pequenez
desta minha vida, que não conduz a nada.
VÍCIOS E FIGURAS (para Ada)
Esforço-me nos versos, pleonástico,
elíptico, siléptico, fiel ao anacoluto...
As reticências, sem cessar, escuto
e devo imaginar um quê bombástico.
Metalinguagem de sabor fantástico,
levando à finitude o absoluto...
E pela boa sentença, ponho luto,
em mercurial anseio sorumbático.
Que eu jogue com palavras, jogo agora
com o jogo de palavras feito outrora,
porque é meu jogo e assim tenho direito
de zombar dele, qual zomba de mim:
metaperíodos, metameta, assim,
somente um exercício sem proveito.
RETALIATION
This is normal indeed, for less blessed
it is to receive than to give -- o, a deal!...
as much your feelings you'd well conceal
still there's resentment for being pressed
into thankfulness; you feel you're lessened
by having to take help and someone's advice.
it's like patronizing to you; and the spice
is bitter on your tongue, you fancy wizened.
therefore so often feelings for rebellion,
were manifested, oppression and smothering,
the suffocating power of a presence
felt too strong and all the more exacting
as nothing was requested, no collection
but for heart and mind and soul's essence.
eu sei que fui [2008]
("Tudo que é humano me pertence" - Aretino)
há duas crenças de que não abro mão:
existe a divindade universal,
que me criou, senhor do bem e mal,
que fez o mundo de sua própria substância
e que o conserva, em contínua criação,
qual leibniz o cantou, em prima instância.
tenho a esperança da imortalidade,
o verso da moeda e o corolário:
minha existência é puro dispensário
dessa deidade que paira sobre tudo,
mesmo que a vida seja veleidade,
ainda é para mim espada e escudo.
a outra crença é a da inspiração,
henoteísta que seja ou até pagã:
ela brota de mim, sei não ser vã.
apolo e as musas, o alegre dioniso
se alternam a alimentar esta paixão
e diariamente atendo a seu aviso.
se eu mesmo sou imortal é irrelevante:
tenho certeza de que o mundo é permanente,
surge de brahma ou zeus, nele é imanente,
não importa o nome por que o chamarei,
mas se meu próprio espírito é constante,
dentro de poucos anos saberei...
porém eu sei que fui. que tive vidas
de insondável sabor, de maresia,
de alpinismo, balé, espeleologia:
fui nobre e camponês, fui operário,
a estranhas invenções eu dei guarida,
fui apenado e agente carcerário.
fui rei e fui pirata. eu fui ladrão,
fui estuprado e cometi o mesmo mal,
fui magarefe, almocreve e general,
morri criança, fui mulher, nasci leproso,
morri assassinado, afogado, fui ancião,
passei miséria e provei do saboroso.
fui infiel, apóstata e ermitão,
matei hereges, também fui massacrado,
eu já penei de amor e o ódio, a meu lado,
permaneceu fiel em sua constância;
já fui homem de honra e o galardão
recebi por meus feitos desde a infância.
já matei a mim mesmo, tantas vezes,
e me perdoei por tanto mal retido:
fui indiferente ao pobre desvalido
e suas chagas eu curei, com sacrifício,
fui honesto e enganei os meus fregueses
e retribuí o bem com malefício.
eu fui pintor e artista, um sedutor
mil vezes seduzido. eu governei
cidades e nações e me queimei
no incêndio das antigas bibliotecas,
em busca de salvar daquele ardor
as obras-primas de cem pinacotecas.
eu sei que fui e sei que ainda serei,
pelos milênios que à minha frente avisto,
nos milhares de vidas em que insisto
ser débil ferramenta desse deus
que me criou. e assim, me ajoelharei
nessa pilha de ossos que são meus!...