Meninos de Azul

I

Olha, Clara, é uma ilusão tamanha o meu imaginar.

Eu tenho um segredo de fazer os versos:

É só desacontecer com as palavras.

A lua me deixa um clarão dentro

Que só por Deus me escurecer.

É quando estou a par com as estrelas.

Olha, Clara, é tudo uma ilusão.

Eu tenho me esquecido muito

Quando estou a sós comigo

A inventar em mim o Absurdo.

Acho que estou doente de Poesia.

Grávido de versos na areia e sal

De um mar sonhado em infinito.

Vem comigo? A gente brinca o sono

Nas nossas tardes coloridas.

II

Primeiro eu penso uma boneca.

Enfeitada de carícias mansas

Ela e os olhos verdes também.

A gente abre bem dentro dela

E vê se o oco tem sentimento.

Depois a gente põe pó-de-serra

E costura com linha a barriga:

A gente enche o nada de alegria.

III

Também as árvores são acontecidas de verde.

Vê? Um imagem bonita para crianças:

- o calango no tronco de um tamarindo

lembra-me um resto de dinossauro -

Também um pássaro a sorrir seu canto

Na loucura dessa paisagem

É um pedaço da voz de Deus

Que se enloucou e soa.

IV

O rio é um pedaço de depois-da-chuva

Lá no atrás da casa. Recorta muitas cidades

De formigas. Construiremos então uma ponte

De palitos de sorvete. Colocaremos besouros-verdes

Nessa imundície alagada de vida:

Para colorir o acontecimento.

V

Olha, Clara, eu também tenho uma pipa.

É. Ela beira as barbas de Deus quando passeia.

É linda. Vermelha e azul. E tem um rabo imenso

Serpenteando um céu de azul e nuvens.

Se quiser, pode brincar com ela.

Só não deixa ela fugir pro Sol.

VI

Eu gostava de inventar brincações pueris.

De juntar restos de objetos e por neles validez.

Latas e sabugos eram sagrados naquele tempo

Porque sabiam de trens e bois. A Bita cabrita

Olhava de longe, mascando longamente o capim

Como se ruminasse uma saudade antiquíssima.

Ia para debaixo das árvores a construir ilações de amor

E na solidão da minha absoluta vida eu arriscava

Desinventar essências. Eu sabia do absurdo que é ser

Para trás de onde o trem apita. A Bita olhava sempre

Meu jeito meio sonso de saber de descobertas coloridas.

VII

Muito já mijei atrás da casa e comia em cima da mesa.

(Isso é um segredo que te conto na minha timidez velhaca)

Meu pai dizia que eu tinha jeito para galo de São Pedro.

Pode ser.

Mas que mijar atrás da casa era um experimento

De solidão, atesto. E que um dia eu lasquei fogo em álcool

E as pestanas, então, queimaram de puro ressentimento das chamas.

VIII

Nós podemos também a alegria pintar de ver.

De ver e de verde. Sonhar para os sonhos

A realidade muito imaterial. E contornar

Com sandálias de palha alguns arco-íris

Da pura infância. Seria assim do tão bonito.

E com um carrinho de rolimã descer até

O silêncio de uma rua. Lá olhar para cima

À procura de outros meninos estrepuliados

De brincadeiras. É uma magia leve, isso.

IX

Menina Clara, algumas tardes ficaram na infância muito molhadas.

Por exemplo, no dia em que tia Nize disse do Índio.

Dezenove de abril, etc. No final, a gente desenhou

Um indiozinho em preto-e-branco, no colorido nosso

De imaginar aldeias, caciques, o arco-e-flecha

E muito safadamente indiazinhas de peito de fora.

Foi uma invenção de adolescência, aquele dia.

Pena ter sumido no esfumaçado dos anos

Aquela alegria impertencida que sabia

De risadas genuínas.

X

Na escola, aliás, era onde a solidão se ampliava.

Os ventos dos corredores me isolavam do mundo

E dentro de mim os sentimentos cresciam enormes.

Eu tinha - e tenho - muita saudade da Mãe.

Ela estava tão longe, inalcançável

E eu subia as longas escadas chorando

Pedindo a Deus que a Mãe viesse

E que me tirasse da solidão do absoluto.

Um tempo que o coração do menino

Se esgueirava por entre os contornos

Do abandono.

XI

A alegria era um enfeitar de carícias.

De manso, mansinho, era que desenhava

No papel um pássaro de asas enormes

E punha dentro dele um colorido de arara.

A felicidade eu bebia do Sol, em sol risos.

Era assim a paisagem dos sonhos, o mundo

Dos infinitos meninos desenhados de azul:

Os olhos é que se esqueciam do mar

E dentro a força de uma criança

A voar no seu catavento-de-papel.

XII

Um dia, Clara, sonhei eu imenso sob o arco-íris.

Foi uma noite de felicidade extrema: quase eu tomava

As cores com taça de ouro. Um refinamento de infâncias.

Corria dentro do arco-de-cor, subia, descia, imitava

Um avião com os braços em asas e voava, voava...

Até que a força da realidade me trouxe de volta

E então os olhos se abriram na escuridão

E de dentro do dentro eu vi um silêncio mágico.

XIII

Como o dia em que aconteceu de eu existir ao contrário.

É, é meio estranho mesmo, Clara, mas é real. Foi assim:

Eu acordei meio um pouco leve e com os olhos

No fundo dos sentimentos pintados de azul.

Dentro de mim uns luares feitos de cinza

E alguma coisa acontecida fabricada de verde.

Amanhecia as auroras no manso da retina

Como se um tucano se demorasse imenso

Sobre o arco-íris. Alguns Duendes também

Brincavam comigo ali nessa inundação

Desenhada com os contornos das Fadas.

Foi uma extensão de inutilidades aproveitáveis.

E eu estava ao contrário de mim porque a vida

Era uma liberdade de alma em transe de amor.

Só a pura infância.

XIV

Clara, eu tenho um envelhecer de ternuras.

Um aquário de cores que transbordam os olhos

Só de sentir os peixes em transe de coloração.

Uma caixinha-de-música com uma bailarina

Que só de ouvir a gente cai em sonolência de dengos.

Na cabeceira da cama, um rosário e um macaquinho

Revestido com uma roupinha vermelha. Um brinco.

Quando a noite anoitece, o medo me toma pelas bordas

E eu corro debaixo das cobertas, na minha fortaleza

À espera de um humano gesto de proteção delicada.

Eu gosto muito, Clara, de escrever poemas inventados.

Há, dentro deles, uma alegria estranha e serena

Como um som de águas que vem das cachoeiras:

"Um dia mágico:

A rosa, a garça

A leveza da vida

Desenhada de penas

Em amor-vermelho."

Algumas vezes, Clara, eu esqueço o que ia dizer:

É quando a beleza ganha vida em minha alma.

XV

O vento venta suas vozes voáveis.

O pássaro passeia suas penas e plumas.

O rio ri seu sorriso: riachorão.

A ponte passa por dois pontos - precipício.

A lagoa lamuriosa lava lenta o lodo.

A música menciona a melodia mística.

As nuvens que se sonham sedas.

As aves que se deslocam em V: ventando voos.

O sonho é uma realidade ao contrário.

Os esquilos que se esqueletam esquivos.

Os restos e resquícios de uma re-realidade.

Minhas maiores verdades inconcluídas por mim.

XVI

São esses, Clara, os espaços poemados de infâncias.

Córregos esquecidos sob um leito azul

De águas que fluem até as mananciais

Da minha meninice líquida e morna.

O raso beijafluir de doçura levíssima

É um sopro de fogo encantado a soar

Na arquitetura mais tenra do amor.

Diante do mistério das inocências

É que se construíram alguns olhos

Carregados do imaginar açucarado

Das doces lembranças fluídas

No coração-silêncio do menino quieto

No retrato pendido na parede da sala.

XVII

Guardo alguns girassóis nos bolsos.

Um brilhoso sentir entre os dedos

Escorre margeando o meu corpo

A iluminar imensamente

O grande silêncio que emerge lento

Do fundo das brincadeiras que invento.

Depois, quando o que é Intenso plenifica,

Sou acróbata de mágicas

- Menino-de-asas -

E volto a semear, luzente,

Os girassóis no peito

Um sorriso de quimeras

No altivo rosto do Tempo.

XVIII

Lembro que a vida só era possível desinventada.

Desesqueço que as águas molhavam meu rosto

Quando eu chorava para dentro do meu soluço.

E tinha aqueles brinquedos tortos maravilhosos.

Um pedaço de pau e uma roda era um carrinho

Rico de sutilezas a deslizar

No esquecido remoto

(Tapete de saudades)

Dos ladrilhos voáveis

De um sabor quase lilás.

As cirandas que circundavam

Nossa meninice serelepe

E rodavam-se os risos rosados

Na roda da esperança súbita:

Um desencontrar-se de meninos

Encontrados com a Alegria.

XIX

Aconteceu-me poemâncias: um dia de vidro

Dormindo na garganta sinistra da manhã.

Uma estrela que se soube mimo vaga-lume

Pousada no esquecimento de uma pétala.

O Mar me-vendo-me para dentro de mim

Um absoluto de lonjuras e espaços

Até infantilizar as bordas do Infinito.

Uma árvore que me arvoreou o pensar:

E eu me soube exuberância de esperanças.

Um corguinho carregado de lambaris

Correndo banais às cachoeirações fofas.

O Céu de sonoro a azul se desdelimitando

Com a abóboda pirilimpitada de astrais.

Aconteceu-me poesia de tanto brincar

Com esse sorriso em sépia dos Sonhos.

XX

No seio do vento gélido, minha leveza vai.

Algumas dobraduras descem na correnteza

Quando a chuva era uma saudade molhada

E chegam ao mar das lembranças bordadas.

Lembro-me sobre o altar, vestido de anjo

E com asas imensas que queriam voar.

Estava era pasmado de amor à liberdade.

Tudo é memória. Saudade. Solidão.

Um carrinho sem a roda no canto da sala

Prova que o tempo custa esquecê-lo de mim.

A morte do Vô: uma manhã vestida de cinza

Dentro do pequeno coração do menino.

A locomotiva veio de longe, ficou grande

E enormemente passou. Deixou um vácuo a vapor

E uma tristeza atropelada de saudades.

A bola. O tombo. O pé quebrado.

Dias e dias sem sair do sofá.

Castelo Rá-Tim-Bum. Senta que lá vem a história.

Tio Lino era a alegria em pessoa que conheci.

A Vó, o Vô. Todos passaram derrepentemente

Como se eternamente nunca fossem morrer.

(Um choro diminuto faz das minhas lágrimas

Sequelas gravíssimas cravadas como em pedra.)

O sábado e seu amarelo brincar.

O domingo e seu abandono em vermelho.

A escola, os amigos, as brincadeiras.

Os livros de enormes aventuras. O circo.

O mágico mundo dos palhaços e malabares.

Bétia, queima, caça ao tesouro.

Trilhos de trem e descobertas.

Pega-pega, estilingue, garrafão

A motoquinha, o triciclo, o jabuticabal,

Cana, melado, manga, sagu,

Pipa, maranhão, casinha na árvore

Cavaleiros do zodíaco, Jyraia, Jaspion

Bruce Lee, Van Dame e Didi Mocó.

Tempo em que a poesia era viva

Porque a vida era viva poesia.

No seio do vento minha leveza vai

Deixando cicatrizes, saudades

E uma infância tecida em azul.

XXI

Pois são essas, Clara, minha infância pra você:

Só as claras lembranças que me purificaram.

(Sinto que perdi a felicidade em algum lugar

E reinventei, agora, minha solidão colorida

Para entendê-la à luz da adultícia - essa doença grave).

Mas o que fica é isso: a insuspeita aventura

Daquilo que acontece na surdia da vida

E quando estamos mesmo distraídos.

É o que não se diz e sente.

É o que se é - aquilo que vive

Em eternidade de amor.

Fernando Marini
Enviado por Fernando Marini em 05/07/2014
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