O AFILHADO DE NOSSA SENHORA

O AFILHADO DE NOSSA SENHORA

(Tradicional do interior brasileiro, recolhido por Sílvio Romero

e Monteiro Lobato, recontado por William Lagos, 23/7/11).

O AFILHADO DE NOSSA SENHORA I

Em tempos que já lá vão, um fazendeiro

enriqueceu de tanto trabalhar...

(O que demonstra uma grande habilidade,

porque para ficar rico, na realidade,

mais garantido é algum tesouro achar...)

Mas foi com a terra que ganhou todo o dinheiro.

Porém é claro que foi favorecido:

não havia seca e nem inundação.

Era tão longe, que quase não pagava

o imposto todo que a vida atrapalhava:

Nem as décimas da Igreja, sem perdão,

e nem o quinto do rei lhe era exigido...

Era preciso atravessar um rio,

um mato escuro e um despenhadeiro.

Os cobradores de impostos se assustavam

e até a sua fazenda não chegavam...

Desse modo, foi juntando o seu dinheiro,

crescendo em seu orgulho e no seu brio...

Nunca houve praga em sua plantação;

o seu gado crescia gordo e forte;

tinha cavalos, ovelhas e escravos,

a quem tratava bem. Animais bravos

ele caçava, com constante boa sorte...

Mas ocultava seu vaidoso coração.

O AFILHADO DE NOSSA SENHORA II

Se ele tratava bem a escravaria,

era porque os considerava como gado.

Não se espanca qualquer vaca leiteira,

nem a ovelha que nos dá lã de primeira.

Nenhum cavalo seu era esporeado

e o algodão... era o escravo que colhia!...

E assim, como tratava a todos bem,

correspondiam a esse tratamento.

O gado de corte engordava e era bem manso;

cada escravo trabalhava sem remanso;

as colheitas produziam rendimento;

tinha saúde e seus filhos também...

Quando chegava o tempo de colher

ou era a safra do gado e das ovelhas,

ele reunia toda a produção

ou em burros ou em grande carroção

e saía a percorrer estradas velhas,

com muita gente para o proteger.

Comprou um barco para cruzar o rio;

pôs uma ponte sobre a ribanceira; e o mato

ele cortava até a próxima cidade...

Vendia tudo com facilidade,

comprava o que queria bem barato,

prevendo os dias de calor ou frio...

O AFILHADO DE NOSSA SENHORA III

Seus guardas eram pagos muito bem;

para os escravos, comprava rapadura;

para suas roupas, peças de tecido,

de preferência de pano colorido;

trazia presentes para a gente escura,

satisfeitos com o pouco que lhes deem.

Mas como não há mal que sempre dure,

nem coisa boa que não venha a terminar,

certo dia a sua esposa faleceu,

quando o terceiro filho lhe nasceu.

Nem houve tempo para médico buscar,

sem que o cuidado da parteira a pobre cure.

Ficou o viúvo com três filhos, sem mulher:

nomeou uma escrava como sua babá.

Cresceu depressa o mais velho, que era Nauro;

o do meio, Mauro e o menor chamado Lauro...

Mas a verdade é que igual que mãe não há:

cresceram soltos e como Deus quiser...

Entretanto, o menorzinho teve sorte,

porque as criadas todas o adotaram:

davam comida, vestiam com carinho,

ensinaram a rezar, de pequeninho,

enquanto os outros da igreja se afastaram,

sem temor nem de Deus e nem da morte!

O AFILHADO DE NOSSA SENHORA IV

Mas depois aconteceu revolução,

quando expulsaram o bom Imperador.

Durante anos, só matavam gente.

Ficou o acesso mais difícil. Raramente

alguém reunia o suficiente ardor

para chegar àquela plantação...

Não obstante, seguia o fazendeiro,

com esforço ainda, duas vezes cada ano,

a levar até a cidade a produção,

bem protegido contra qualquer ladrão.

Subiram os preços de um jeito insano

e assim ganhou ainda mais dinheiro!...

Só muito tempo depois soube da lei

que concedia aos escravos alforria.

Ele pensou bastante em que fazer,

pois na cidade já conseguia ver

como a pobreza aos forros atingia,

libertados quando ainda havia o rei...

E conversou com seus negros de confiança,

que sempre o acompanhavam na viagem

e também com os outros empregados.

Os seus servos não eram maltratados

e com os brancos tinham camaradagem,

mas até no sertão a lei alcança...

O AFILHADO DE NOSSA SENHORA V

Os seus escravos tinham liberdade,

depois que todos os negócios terminavam,

de procurar algum divertimento,

pois nenhum deles tinha ressentimento

e até com bom dinheiro eles andavam

e percorriam assim toda a cidade.

Com o patrão falaram francamente:

"Os forros da cidade passam mal.

Ficaram bem contentes no começo,

pelo trabalho não tinham mais apreço,

passaram mais de ano em Carnaval!...

Porém depois ficou tudo diferente..."

"Porque ninguém lhes dava mais comida:

só arranjaram barracos pra morar.

Quando seus donos foram procurar,

ninguém emprego mais queria lhes dar,

pois veio gente das europas trabalhar,

viviam de changa, só arrastando a vida!..."

Assim, quando voltaram à fazenda,

um acordo fizeram com os demais:

Seriam alforriados, mas ficavam;

teriam salários e também se alimentavam.

E depois disso, trabalharam até mais,

na gratidão com que a justiça atenda.

O AFILHADO DE NOSSA SENHORA VI

Contudo, tornou-se o mato mais cerrado,

caíra a ponte sobre o despenhadeiro,

até o rio se fez mais caudaloso.

Todos achavam muito perigoso:

ninguém chegava nunca no terreiro

e o pobre Lauro sequer foi batizado...

Mas nem por isso virou um mau menino,

porque, em casa de cristão, Nossa Senhora

vira madrinha dos que não a têm...

Mandou batismo lá do céu também,

sempre no aguardo que chegasse a hora

de um batizado mais correto e fino...

Mas o tempo foi passando e o mais velho

não queria na fazenda fazer nada.

Os forros como escravos ainda tratava,

batia nas crianças e se invocava,

interferindo na vida da empregada,

sem escutar do pai nenhum conselho.

Quando Lauro completou seus sete anos

o pai uma experiência arquitetou.

Uma semente ele deu a cada um,

que a plantassem perto do urucum...

Com má vontade, Nauro a sua plantou,

Mauro e Lauro com bem menos afanos...

O AFILHADO DE NOSSA SENHORA VII

Para Nauro cresceu então uma limeira,

que se tornou adulta bem depressa.

Para Mauro nasceu um limoeiro,

que foi crescendo bem menos ligeiro.

Mas a bênção sobre Lauro nunca cessa:

logo brotou uma formosa laranjeira.

Porém Nauro outras mais foi aprontando:

foi pelo pai muitas vezes repreendido.

Mas cada vez respondia mais azedo,

aos poucos, foi perdendo todo o medo.

E tantas vezes foi o pai desobedecido,

que sua paciência devagar foi terminando.

Então um dia recebeu mais séria queixa,

muito mais grave que tantas anteriores.

Chamou a Nauro dentro do escritório

e falou desta vez, peremptório:

"Não posso mais aguentar teus dissabores:

se não me queres respeitar, então me deixa!"

E Nauro respondeu, com emoção:

"Olhe, pai, prefiro mesmo correr mundo!..."

"Pois muito bem! Agora, então me diga:

pouco dinheiro com a bênção mais amiga;

ou lhe darei, com o desgosto mais profundo,

muito dinheiro, com a minha maldição!..."

O AFILHADO DE NOSSA SENHORA VIII

E o rapaz respondeu, sem hesitar:

"A sua bênção não se bebe e não se come!

Prefiro um saco cheio de dinheiro

e levar o meu cavalo parelheiro...

Assim por certo não vou passar fome

e para esta prisão não vou voltar!..."

"Pois irá terminar numa prisão

de verdade. Vai perder o meu dinheiro,

vai passar sede e também sofrerá fome.

Isso acontece com quem dinheiro tome

sem o ter merecido. É mal certeiro...

Pois parta agora, com a minha maldição!..."

O rapaz ficou até meio abalado,

mas já tinha corrompido o coração.

Pegou o dinheiro sem nem agradecer...

Somente aos dois irmãos ainda foi ver

e lhes contou sobre o dinheiro e a maldição:

"Eu preferi foi ter dinheiro bem contado!..."

Então Nauro levou os irmãos até a limeira;

que estava alta e frondosa lhes mostrou.

"Se algum dia a limeira ressecar,

vou precisar de vocês a me ajudar...

Mas se esse pé notarem que secou,

a minha própria morte é verdadeira!..."

O AFILHADO DE NOSSA SENHORA IX

Assim Nauro obrigou seis empregados

a saírem com ele pelo mundo.

Tiveram medo de desobedecer,

mas vendo que o mundo ele ia correr,

foram tomados de temor bem mais profundo

e lhe disseram não serem mais escravizados.

Nauro insistiu que deviam obedecer!

Os empregados se entreolharam

e então um deles lhe disse, corajoso:

"Nós o acompanhamos no trecho perigoso,

mas depois que os perigos já passaram,

cada um de nós vai decidir o que fazer!"

Assim os seis seguiram, bem armados,

pegaram o barco para cruzar o rio,

pelo mato cerrado atravessaram,

a ponte mais ou menos consertaram...

Mas depois lhe mostraram todo o brio:

"É do seu pai que somos empregados!..."

"Eu de vocês não tenho precisão!..."

disse o rapaz e seguiu o seu caminho,

sem olhar para trás ou agradecer.

Os seis homens não acharam o que dizer,

foram voltar para as famílias e o carinho,

deixando Nauro só com a maldição!...

O AFILHADO DE NOSSA SENHORA X

Ele troteou devagar, até a cidade,

hospedou-se e banhou-se muito bem.

Comeu e bebeu o quanto quis,

muito contente por ser dono do nariz.

Em sua cabeça pensava ele, porém:

"É o dinheiro que nos traz felicidade!"

"Era besteira a tal de maldição!..."

Seguiu depois, em busca de aventura,

sem encontrar a menor dificuldade.

Foi gastando dinheiro, é bem verdade,

que paga a prata por muita doçura...

Muito contente com a sua decisão!...

Passado um tempo, lá no fim da estrada,

viu que se erguia um alto castelo.

Esporeou seu cavalo sem receio,

atravessou uma senda, pelo meio

de um jardim bem cuidado e muito belo,

até alcançar desse castelo a entrada.

E logo apareceu a castelã:

"O meu nome é Princesa Leonor...

Este castelo é meu, porque meu pai

seguiu o caminho a que toda gente vai...

Mas se apeie, cavaleiro, por favor,

verá que a hospitalidade não é vã...

O AFILHADO DE NOSSA SENHORA XI

E foi de fato muito bem recebido:

pela princesa até se apaixonou

e passou no castelo vários dias,

pois lhe atendiam quaisquer fantasias

as criadas e os guardas que encontrou:

Fora uma bênção da fazenda ter saído!...

Mas um dia, no jardim foram passear

ele e a princesa, os dois de braço dado

e chegaram até onde havia um riacho...

E a princesa, para dar um longo passo,

ergueu a barra do vestido, sem cuidado

e as lindas pernas acabou por lhe mostrar!

E a seguir, mostrou-lhe a horta inteira,

onde cresciam hortaliças bem viçosas:

couves enormes chamavam a atenção.

Já na volta, a princesa deu-lhe a mão

e perguntou-lhe que coisas mais formosas

tinha encontrado na visita assim ligeira...

E Nauro respondeu: "Ah, minha princesa,

foram as couves, sem dúvida alguma!"

Leonor sentiu-se muito ressentida,

que outra resposta esperava... Por contida

que fosse a raiva, já não tinha mais nenhuma

boa-vontade com Nauro, com certeza!...

O AFILHADO DE NOSSA SENHORA XII

Convidou-o a jogar cartas nessa noite

e bem depressa, ganhou todo o dinheiro

e depois o seu cavalo e, no final,

por completar da maldição o mal,

Nauro apostou então o corpo inteiro,

dominado pelo jogo, em seu afoite...

E é claro que perdeu mais uma vez!

Chegaram então os guardas da princesa,

tiraram toda a roupa do rapaz

e o chicotearam, como nem se faz

com o mais triste dos escravos, com certeza!

Ele ficou sentindo dores por um mês!...

Então lhe deram para usar roupa de saco

e o levaram para um calabouço,

onde encontrou muitos outros prisioneiros,

todos sofrendo por terem sido interesseiros.

E a princesa ordenou que a esse moço

só dessem couves a comer em tal buraco!

Só então Nauro foi se arrepender

de ter pedido ao pai a maldição...

Passou fome e passou sede, ali encerrado:

com tantos outros ficou acorrentado...

Em pensamento, ao pai pediu perdão,

mas era tarde e tinha de sofrer!...

O AFILHADO DE NOSSA SENHORA XIII

Daí a uns dias, olhando a sua limeira,

seu irmão Mauro reparou estar secando...

E foi falar com o pai, que algo de errado

acontecia com o pobre amaldiçoado...

O pai fingia que não estava escutando,

mas Mauro repetiu, com voz certeira.

"Pai, eu tenho de ajudar a meu irmão!"

O velho respondeu que não queria.

"Você é trabalhador, faz falta aqui,

não quero que me saia por aí!..."

E como o filho a suas palavras resistia:

"Você não viu que dei a Nauro a maldição?"

"Meu pai, insistiu Mauro, não me importa:

é meu irmão e tenho de o ajudar!..."

"Pois muito bem! Você quer pouco dinheiro

com minha bênção? Ou igual que o aventureiro,

cujo destino resolveu acompanhar,

e veja bem se o coração me corta..."

"Prefere sair daqui com maldição

e bastante dinheiro? A escolha é sua..."

"Pai, o senhor sabe que o respeito,

mas a viagem é longa. Se não há jeito,

só com bênção não se anda pela rua:

quero o dinheiro!..." respondeu, com ambição.

O AFILHADO DE NOSSA SENHORA XIV

"Pois muito bem. Eu lhe darei dinheiro,

mas isso em nada o irá ajudar,

porque todo o dinheiro irá perder:

um mau caminho terá de percorrer

até seu pior irmão poder achar

e igual destino será o seu, ligeiro!..."

"Senhor meu pai, por favor, não leve a mal!

Sempre mostrei ser amigo e obediente,

mas eu tenho de salvar o meu irmão!"

"Pois muito bem. Vá com a minha maldição,

não quero vê-lo de novo na minha frente!

Terá um péssimo destino no final!..."

Mauro tentou se despedir do pai,

mas o velho deu-lhe um saco de dinheiro

e lhe virou as costas, sem demora!

Mauro então deu de ombros e foi embora,

após pegar as moedas bem ligeiro,

mas procurar seu irmão Lauro ainda vai...

E lhe mostrou a limeira e o limoeiro:

"Eu vou agora ajudar o nosso irmão,

mas se o meu limoeiro vir murchar,

igual que essa limeira ressecar,

é que bem ruim ficou minha situação

e de sua ajuda vou precisar ligeiro!...!

O AFILHADO DE NOSSA SENHORA XV

Seis empregados o foram conduzir,

até passarem pelo despenhadeiro.

Foram com ele de muito boa-vontade,

mas ao chegarem no caminho da cidade,

se despediram dele rápido e ligeiro...

E assim Mauro foi sozinho prosseguir.

Teve notícias de Nauro na cidade

e bem depressa seguiu igual caminho.

Logo alcançou o magnífico castelo,

cruzou o jardim florido e muito belo,

pela princesa foi tratado com carinho

e recebido com a maior hospitalidade...

Pediu depressa notícias de seu irmão

e Leonor lhe mentiu que fora embora,

após passar um mês no seu castelo...

Era uma pena: o tratara com desvelo,

mas não quisera prolongar a sua demora:

quando partira, lhe partira o coração!...

Mas convidando Mauro a um passeio,

sobre o riacho arregaçou a saia,

mostrando pernas lindas, bem torneadas...

A seguir as verduras bem tratadas

e no retorno, fez pergunta de igual laia

e Mauro de falar teve receio...

O AFILHADO DE NOSSA SENHORA XVI

Porque a coisa mais linda que ele vira

eram de fato as pernas da princesa...

Então mentiu terem sido suas alfaces.

Leve rubor tingiu então as faces

de Leonor, que escondeu, com altiveza,

todo o desapontamento que sentira.

E nessa noite, o convidou para partida

e nos dados seu dinheiro ela ganhou,

até as roupas e o cavalo lhe tomou...

Para ver se algo então recuperava,

o próprio corpo então ele apostou:

foi a princesa outra vez favorecida...

Ela chamou a sua guarda, então...

Deram uma sova no pobre do rapaz

e lhe trocaram a roupa por um saco

e quando o enfiaram no buraco,

ela deu ordem, com palavras más:

"Só terá alface como alimentação!..."

E quando foi jogado na prisão,

Mauro encontrou seu irmão acorrentado

e se encolheu, mal aguentando a dor.

Porém Nauro tratou dele, com amor

e percebeu Mauro ter-se realizado

de seu pai, a segunda maldição!...

O AFILHADO DE NOSSA SENHORA XVII

Passou o tempo e Lauro fez dezoito anos.

Foi olhar a limeira e o limoeiro...

O limoeiro estava todo ressequido,

pela praga da limeira já atingido.

Devia ser um infortúnio bem certeiro,

sendo avisado por fraternais arcanos...

Cedo o rapaz foi conversar com o pai:

"Senhor," lhe disse, "a árvore de Mauro

está ficando seca e entristecida,

por praga igual àquela que ferida

tem a limeira plantada pelo Nauro...

Os dois estão sofrendo e a vida esvai..."

Disse-lhe o velho: "Mas de você eu preciso!

Quem vai cuidar da fazenda, meu rapaz?"

Respondeu Lauro: "O senhor mesmo, pai,

que a sua saúda por longo tempo vai...

E depois, o senhor tem o capataz,

que é um homem fiel, de muito siso..."

"Mas meus irmãos vão precisar de mim!...

Eu voltarei, tão cedo quanto possa..."

"Pois muito bem. Você quer pouco dinheiro,

com minha bênção ou vai querer primeiro

a maldição que minha palavra endossa...?

Terá um saco de dinheiro assim!..."

O AFILHADO DE NOSSA SENHORA XVIII

"Senhor meu pai, disso nem se duvida:

é a sua bênção que quero mais que tudo!

Dinheiro, certamente, é importante,

mas o senhor deu a meus irmãos bastante

e de nada lhes serviu... Eu não me iludo!

Quero sua bênção, que dura toda a vida!..."

"Fico contente que decidiu assim,

porque você nem sequer é batizado.

Veja se encontra um padre na cidade,

que lhe dê bênção de maior validade...

Sairá daqui totalmente abençoado,

mas faça isso, por amor de mim!..."

Então lhe deu um saquinho de dinheiro,

mandou selar o seu melhor cavalo

e preparou também escolta forte,

porém Lauro recusou. "Só terei sorte!

Com sua bênção transponho qualquer valo,

não tenho medo do despenhadeiro..."

"Com o seu barco, eu atravesso o rio

e chego logo até a outra margem;

pela floresta com cuidado irei andar

e o desfiladeiro sei que vou atravessar.

Sua bênção fortalece minha coragem

e o trajeto enfrentarei com todo o brio!..."

O AFILHADO DE NOSSA SENHORA XIX

Com tais palavras, Lauro despediu-se

e seu pai ficou um tanto arrependido

por ter-lhe dado tão pouco dinheiro...

Mas o rapaz era um bom cavaleiro

e nem um pouco ficara ressentido:

fora sincero quando à bênção referiu-se.

Mais importante que batizado achava

ter as bênçãos do pai, pois cada irmão

certamente tinha sido batizado,

porém de nada isso lhes tinha adiantado,

ao enfrentarem do pai a maldição...

Assim em frente depressa cavalgava.

Porém logo sucedeu-lhe um fato mau:

o barco de seu pai desaparecera;

o rio estava cheio e avolumado,

seu cavalo não estava acostumado...

A correnteza, de fato, o surpreendera:

não havia jeito de se passar a vau!...

Contudo, lá do céu, Nossa Senhora,

que é madrinha daqueles que não têm,

velava sobre ele, com cuidado...

E chamando um dos santos de seu lado,

disse que fosse o ajudar também,

a triunfar da perigosa hora...

O AFILHADO DE NOSSA SENHORA XX

Lauro viu um homem alto que chegava,

a perguntar-lhe se queria a sua ajuda.

Lauro disse que sim. "Pois então monte

nas minhas costas. Faz de conta que sou ponte..."

Pegou-lhe as rédeas e aumentou sua altura:

parecia até crescer enquanto andava...

Depois que os dois chegaram do outro lado,

o gigante perguntou se ele queria

ser batizado ali e nessa hora...

Lauro foi logo aceitando, sem demora,

reparando que batina ele vestia...

E bem depressa, ali foi batizado...

Depois, sentiu-se até bem aliviado

e perguntou ao padre o que devia.

"Eu não sou padre, mas sou um bom cristão:

Nossa Senhora me mandou. Sou São Cristóvão."

O seu batismo se confirmaria,

já que o rapaz era puro e sem pecado.

"Nossa Senhora é que foi a tua madrinha,

porém escuta: tens pouco dinheiro.

Eu vou te dar esta toalha de presente.

Quando tua fome ficar mais premente,

é só estender a toalha, companheiro!

Pois de comida se encherá sozinha!..."

O AFILHADO DE NOSSA SENHORA XXI

Fez o sinal da cruz e então sumiu!...

Lauro caiu de joelhos e agradeceu.

Montou em seu cavalo e foi em frente.

Na mata, a escuridão era oprimente,

mas de súbito, um cavaleiro apareceu:

sua armadura até no escuro reluzia!...

"Vem comigo, que te ajudarei...

Eu sou São Jorge, me mandou Nossa Senhora,

para te proteger dos salteadores:

muitos bandidos há nos arredores...

Junto comigo atravessarás agora

e até o fim eu te acompanharei..."

Quando chegaram à beira da floresta,

São Jorge um saquinho lhe entregou:

"Ele está cheio com o bafo do dragão.

A cada vez que enfiares nele a mão,

terás o que a Madrinha te mandou:

pode ser arma ou até roupa de festa..."

"Tudo quanto precisares na ocasião!"

Despediu-se São Jorge e foi troteando.

Lauro ficou olhando e o seu cavalo,

de repente deu um salto sobre um valo

e pelas nuvens seguiu então marchando,

direto ao céu, cumprida a sua missão!...

O AFILHADO DE NOSSA SENHORA XXII

Então o rapaz chegou ao despenhadeiro:

de novo a ponte havia despencado!...

Mas sua Madrinha vira o que ocorrera

e nova ajuda então lhe remetera...

Uma mulher lhe apareceu ao lado:

"Vim te ajudar no perigo derradeiro!..."

"Eu sou Santa Cecília. Vou montar

na tua garupa e cantar uma canção...

Não te assustes com o que vai acontecer,

que a tua Madrinha irá te proteger,

se conservares puro o coração...

Vamos, sem medo, começa a galopar!..."

E o cavalo deu um salto prodigioso

e foi flutuando pelo desfiladeiro,

até pisar do outro lado, calmamente...

Então Santa Cecília lhe deu um presente:

"A música, meu caro companheiro,

é de todos os dons o mais valioso!..."

Apeou de sua garupa e lhe entregou

uma viola caipira das melhores.

"Este instrumento te dará energia:

toca sozinho a mais linda melodia...

Quando estiveres nas ocasiões piores,

darás valor ao que a Madrinha te mandou!..."

O AFILHADO DE NOSSA SENHORA XXIII

Então sumiu e deixou Lauro sozinho...

Ele sentiu que a bênção funcionava...

Abriu a toalha, que encheu-se de comida!

Tirou do saco espada bem brunida

e sempre que a tristeza lhe apertava,

ia tocando a viola no caminho...

Ficava sempre alegre e vigoroso...

Agradeceu em rezas à Madrinha

e continuou a buscar os seus irmãos,

com três valiosos presentes em suas mãos.

Ao entardecer, quando a noite se avizinha,

no fim da estrada, viu um brilho portentoso...

Seguiu sem medo, que fora batizado:

Nossa Senhora olhava lá do céu...

E cavalgou direto até o clarão...

Atravessou com o cavalo e um furacão

o envolveu como se fosse um véu,

mas sentia-se protegido e abençoado.

No outro lado do brilhante portal

ainda era dia e o Sol brilhava

e, lá adiante, erguia-se um castelo,

tão bonito, que lhe bastava vê-lo

e o coração no peito se agitava,

numa emoção brilhante de cristal!...

O AFILHADO DE NOSSA SENHORA XXIV

E logo foi chegando até o portão

que dava entrada para seu jardim.

Foi troteando, dos canteiros pelo meio,

sem no seu peito sentir qualquer receio,

porque sabia ter encontrado, enfim

o paradeiro de, ao menos, um irmão!

E logo veio recebê-lo a castelã:

cabelos louros e um vestido lindo.

Lauro apeou e foi bem acolhido,

seu cavalo na cocheira recolhido,

sendo tratado com cuidado infindo:

já sabia que sua busca não era vã...

Mas quando foi pedir informação

sobre os irmãos, a princesa lhe mentiu:

"Cada um deles já seguiu o seu caminho,

embora fossem tratados com carinho...

Eu sou muito sozinha..." prosseguiu

a tal princesa, cheia de má intenção.

Daí a uns dias, levou-o a seu jardim

para um passeio e chegaram ao regato.

Ela as saias depressa arrepanhou,

mostrou-lhe as pernas e depois saltou

e então cobriu-as, com o maior recato,

brancas e lisas, qual fresco jasmim...

O AFILHADO DE NOSSA SENHORA XXV

E, na volta do passeio, perguntou:

"Qual a coisa que achou ser mais formosa?"

Lauro falou, com a maior sinceridade:

"Minha princesa, vou dizer toda a verdade:

Foram suas pernas, bonitas como rosa...

Mas não se ofenda!..." depressa completou.

"Mas é claro que não! Foi acidente,

eu puxei minhas saias alto demais:

não queria molhar a minha bainha...

Falo a verdade, que intenção não tinha,

não vá o senhor pensar que eu, jamais,

mostre minhas pernas para toda a gente!..."

Mas na volta, cruzaram a estrebaria

e Lauro dois cavalos conheceu,

teve certeza de que ela era mentirosa

e ainda mais, que era muito perigosa...

Fez que não viu. O que pensou, escondeu,

para a inimiga não se trairia...

Viu que a princesa era uma trapaceira

e quando o convidou para jogar,

o rapaz aceitou, mas com cuidado...

E cada vez que ele lançava o dado,

Nossa Senhora o ajudava a acertar:

e assim a sorte para ele era certeira!

O AFILHADO DE NOSSA SENHORA XXVI

E dessa vez, a princesa foi perdendo,

mesmo ao usar dados falsificados,

ou que tentasse todas as trapaças...

Perdeu todo o dinheiro que suas traças

tinham tirado de tantos desgraçados

e mais as rendas que ia recebendo...

Apostou as suas terras e o castelo

e a seguir, apostou um juramento

de que sempre falaria só a verdade

e que nunca o trataria com maldade.

E até pensara em apostar seu casamento,

contra tudo o que ganhara o jovem belo...

Mas ao invés de fazer-lhe essa proposta,

Lauro sobre os dois irmãos lhe perguntou

e Leonor, presa por seu juramento,

tudo lhe confessou nesse momento...

Mas a maldade logo lhe aflorou:

sem respeitar mais nenhuma aposta,

chamou os guardas e o mandou prender,

mas sem deixar que tirassem a sua roupa

e muito menos que lhe fizessem mal...

Porque a resposta, do passeio no final,

de amor por ele a deixara quase louca:

só tinha orgulho demais para dizer...

O AFILHADO DE NOSSA SENHORA XXVII

Assim os guardas o levaram à prisão,

mas não bateram e nem o acorrentaram.

Ele encontrou, no fundo do buraco,

seus dois irmãos, vestidos só de saco,

muito magros, que então lhe perguntaram:

"Você também escolheu a maldição?"

"Não, meus irmãos, a bênção preferi..."

"Mas acabou do mesmo jeito que nós dois!"

"Está certo que estou neste buraco,

mas como podem ver, não visto saco...

Logo verão o que farei depois:

foi por amor que cheguei até aqui..."

A princesa ordenara que lhe dessem

muita comida, do bom e do melhor...

Mas quando abriu a porta o carcereiro,

dando verduras a cada prisioneiro,

Lauro não aceitou de sua ração nem o menor

pedaço que então lhe oferecessem.

Abriu a toalha e estendeu-a pelo chão:

rico banquete logo apareceu...

Ele comeu o que quis e repartiu:

um pouco para todos distribuiu

e cada pobre preso então comeu,

até sentir total satisfação!...

O AFILHADO DE NOSSA SENHORA XXVIII

O carcereiro ficou maravilhado

e até pensou em lhe tirar a toalha,

mas Lauro proclamou-lhe nessa hora:

sou afilhado de Nossa Senhora!

E assim o medo no coração se espalha:

só foi contar o que tinha presenciado.

Mas a princesa não deu ordem nenhuma:

deixou primeiro que passasse uma semana.

Comeram muito bem os prisioneiros

e até mesmo convidaram os carcereiros...

Então Leonor sua presença lhe reclama:

Talvez o seu amor até lhe assuma!...

Lauro exigiu primeiro tomar banho

e apresentou-se todo lindo e perfumado;

tirara muda de roupa do saquinho

e assim apareceu, bem bonitinho...

Pela princesa foi muito bem tratado,

pois afinal, até o castelo tinha ganho!...

Mas a princesa a toalha quis comprar

e Lauro perguntou: "E com que paga?

Ganhei no jogo tudo que era seu

e mesmo assim, no buraco me prendeu!

Depois que me traiu, agora afaga...

O que em troca, me pretende dar...?"

O AFILHADO DE NOSSA SENHORA XXIX

Ela queria era oferecer-lhe casamento,

porém não se animou: "A liberdade..."

"Ora, eu saio de lá quando quiser:

a minha Madrinha me dará qualquer

coisa que eu peça com sinceridade...

E a sua prisão tem excelente passamento..."

"Vamos fazer assim: mande soltar

desse buraco todo o prisioneiro,

dê-lhes de volta as roupas e as montadas,

mais o dinheiro das suas trapaceadas

e não reclame!..." acrescentou, ligeiro,

"pois tudo isso eu já consegui ganhar..."

"E depois de soltar a todo mundo,

vai me deixar no seu quarto pernoitar.

Deito no chão, porém a sua beleza

vou contemplar a noite inteira, com certeza!"

Sentindo o coração lhe palpitar,

ela aceitou, cheia de amor profundo...

Lauro dos dois irmãos se despediu

e lhes disse que acabara a maldição.

"Nosso pai está morto de saudade,

vão até lá, e com sinceridade,

cada um lhe peça logo o seu perdão..."

Sua partida pela estrada ele assistiu...

O AFILHADO DE NOSSA SENHORA XXX

Porém, tão logo a toalha ele lhe deu,

a princesa mandou prendê-lo, novamente.

Ficou Lauro sozinho no buraco,

mas nem por isso ele ficou mais fraco:

tirou comida e vinho e um diferente

objeto em sua mão apareceu!...

Quando puxou, era a chave da prisão!

Abriu a porta, mas não saiu, porém...

E quando veio vê-lo o carcereiro,

enxergou tudo com olhar interesseiro

e foi até a princesa: "O moço tem

outro objeto da maior valoração!..."

Passou-se outra semana e a princesa

mandou chamar o rapaz, que se banhou,

trocou de roupa outra vez e apareceu.

Uma cena semelhante então se deu...

Para ganhar o saquinho, ela jurou

que nunca mais o prenderia, com certeza!

"Mas desta vez, em sua cama eu dormirei...

Eu lhe dou o saco mágico, porém,

será você que irá dormir no chão!..."

Leonor sentiu gemer-lhe o coração,

enquanto seu amor crescia também

e prometeu: "No que quer, consentirei..."

O AFILHADO DE NOSSA SENHORA XXI

E nessa noite, Lauro então dormiu

na cama de Leonor e ela no chão...

Tentou subir, ele a empurrou de volta:

o seu orgulho correu no peito à solta

e apesar de lhe votar tanta paixão,

para o buraco novamente ele seguiu...

Porém Lauro a tocar viola começou:

seu coração encheu-se de energia!

Começaram a dançar os carcereiros,

os guardas, os criados e estribeiros

e invadiu o castelo uma alegria

que nunca mais dali se evaporou...

Então Leonor, dançando no caminho

foi até a prisão para o soltar...

"Por favor, case comigo!" lhe pediu

e Lauro, muito alegre, consentiu

e foram para cima, se abraçar,

a se tratarem com o maior carinho...

E nessa noite, jurou-lhe Leonor

que para sempre o obedeceria,

que seria esposa amante e fervorosa.

Lauro abraçou a esposa tão formosa,

porque sabia nunca mais o trairia

e os dois viveram no mais profundo amor...

Saiu do passado e chegou até o presente:

que conte outra, lhe manda o Presidente!

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William Lagos
Enviado por William Lagos em 26/07/2011
Código do texto: T3118891
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