O sonho de um bebê
O sonho de um bebê
Eu ainda não sei falar
Para te contar a crua dor
Que senti
Quando meus olhos se abriram
E deste mundo viram a cor
Era tanta gente ao redor
Minha cabeça doía, latejava
Parecia que estava sendo esmagada
Como uma embarcação se aperta
No desfiladeiro
Foi assim a sensação de aperto na chegada
Primeiro a cabeça
Depois o pescoço
O tronco finalmente pernas livres
Meus pulmões ardiam
E emiti pela primeira vez um grito de medo e
Alívio
Para ela era o fim do sacrifício
Restava o sangue escorrendo por todos os lados
E as mãos do meu salvador
Tentando tirar os restos dos meus retalhos
Torcia para lá, torcia para cá.
Puxou, cortou costurou.
Tudo acabou.
Tudo começou.
Morri?
Nasci?
E ela tão cheia de sangue
Ainda vivia
Me embrulharam em uns panos
E deram-me para ela segurar
Começamos uma nova vida
O amor de duas crianças
Em uma noite de Natal
Tão cheio de esperança
De Ter um grande final
Fui eu que desci lá do astral
Para dar-lhes esperança
Mas as crianças agora
Não querem mais brincar de amar
Tornaram-se preocupados
E vivem a brigar
Acho até que pensaram em me atirar
No rio, no lixo, no colo dos outros,
Estou cansado de tanto balançar
Só sei chorar e sinto uma dor tão profunda
Que só se acalma quando ela me deixa mamar
Esta dor é como eu ainda não tem nome
Mas muitos a conhecem como fome
Sugo-lhe a seiva tão doce como mel
Gostaria de sentir o que existe além deste véu
Que me cobre para me “proteger”
Bobagem, eles não sabem que sei perceber
Meus olhos inocentes e minhas mãozinhas carentes
Têm ansia de tudo enxergar de tudo tocar
Me cobrem com tantos panos
Me levam para lá e para cá
Já peguei, chuva, vento, tempestade
Já ouvi pela janela aberta
Deitado no colo dela
A sinfonia macabra da chuva de balas
E também gente correndo assustada
Quando o caveirão entra na favela
Faz dias fiquei sem banho,
Minha pele ficou grossa como lixa
Acho que ela ainda não percebeu
Que eu não sou de plástico
Para ela tudo é fantástico
Mas meus braçinhos não são de elástico.
E eu sofro.
Sou apenas um breve sopro
Sou a vida que tenta se renovar a cada dia
Uma onda pequena no oceano
Uma simples nota no meio do piano
Eu percebo que não fazia parte do seu plano
Mas me enviaram para cá
E vocês me cobrem com este véu
Para me “proteger”
O que preciso é banho de sol
Canção de nincar
E Ter o seio para me alimentar
Não quero saber de passeios noturnos
Em esquinas escurar
E ônibus cheios e empoeirados
E ficar na fila para a revista
Na hora da visita aos condenados
Deixe-me viver o dia-a-dia do bebê
E vê se não esquece que eu preciso comer
Porque minha única esperança
Até agora o meu maior sonho de criança
É dormir sossegado, ficar bem agasalhado
De banho tomado, chorar e ser acariciado
E encher a minha pança.