PRIMORDIALIA

No princípio, o som não era som.

Era uma intenção tímida,

um arrepio do nada

suspeitando que poderia ser algo.

Então veio o ritmo —

não por desejo de música,

mas por saudade de ordem.

O caos teve inveja da simetria.

E dançou.

Deus ainda não era Deus.

Era apenas um ponto de interrogação

com vertigem de consciência.

Questionou-se. E isso foi luz.

Foi quando o tempo,

esse estagiário do eterno,

decidiu andar.

Um passo por dúvida,

dois por desejo,

e tropeçou — na matéria.

A primeira pedra?

Era um pensamento que esqueceu de ser leve.

A primeira árvore?

Uma ideia enraizada por engano.

O primeiro corpo?

Um gesto que ficou preso num espelho.

A carne não veio com manual,

mas veio com sono.

E o sono inventou o sonho,

só pra que o impossível tivesse um lugar onde ensaiar.

A mente surgiu tarde,

mas fez questão de parecer a autora.

Ela colecionou razões,

explicou a morte antes de entender a manhã,

escreveu manuais para sentimentos

que só se abriam com lágrimas.

Enquanto isso, o coração,

esse motor sem engrenagens,

continuava batendo como se soubesse de algo

que ninguém mais lembrava.

Veio o amor —

não por nobreza,

mas por falha no código da solidão.

Uma rachadura bem-vinda.

A gente se olhou,

e isso nos doeu.

Por isso continuamos.

Vieram as cidades.

Empilhamos medos e chamamos de prédios.

Cercamos a dúvida com concreto

e demos ao absurdo o nome de “rotina”.

Mas dentro, bem dentro,

sempre havia um pássaro —

não uma alma,

mas um instinto de verticalidade.

Você já sentiu isso?

A sensação de que esqueceram de te explicar o essencial,

mas mesmo assim você continua,

como quem sabe de um segredo

sem saber qual é?

Então, veio a poesia.

Não a que rima.

Mas a que lembra.

Veio para dizer que o invisível é real,

mas tímido.

Que o silêncio é uma linguagem antiga,

e que toda saudade é, na verdade, memória de algo

que ainda não aconteceu.

E é por isso que escrevo:

porque talvez alguém — você —

esteja à beira de se lembrar.

…o que chamamos de “eu”

é só uma assinatura mal lida,

rabiscada por um autor que escreve com luz

mas esqueceu as vogais.

Toda identidade, no fundo, é empréstimo.

Uma roupa vestida pela consciência

só pra ela poder brincar de “gente”.

Mas e se o nome que repetes todos os dias

não for teu verdadeiro nome,

mas o eco do chamado que ainda não respondeste?

E se teu rosto for apenas uma metáfora

que teus ancestrais esculpiram com medo de se perder?

E se você for mais próximo da dúvida do que da certeza?

Os deuses…

ah, esses velhos astros aposentados

que agora moram em memes e marketing —

eles não morreram.

Eles viraram neurotransmissores.

Marte é um pico de cortisol.

Afrodite, uma oxitocina bem colocada.

Hermes, um pensamento acelerado demais para dormir.

E você os invoca sem altar, sem saber.

Cada impulso teu

é um mito em versão beta.

Já percebeu?

O inconsciente é só o backstage onde o Real tira os sapatos.

Ali, o medo faz cafuné na tua coragem

e o amor veste a roupa da raiva só pra testar tua escuta.

E o tempo?

Ah, o tempo nunca andou pra frente.

Ele é circular,

como uma desculpa elegante que o universo encontrou

pra você rever suas lições com disfarces novos.

Por isso os encontros se repetem.

Por isso você sonha com coisas que não viveu.

Por isso certos olhares te dizem “voltei”

quando tudo ao redor insiste em “prazer, quem é você?”

Há uma memória antes da memória.

E é ela que este poema tenta tocar.

Abraham Cezar
Enviado por Abraham Cezar em 03/04/2025
Código do texto: T8300678
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