A Última Oração
Deus, eu que sou o esboço de um protozoário,
A penugem morta de um abutre,
A fragrância torpe de um cadáver,
A secreção turva da ferida.
Deus, eu que de verdade tenho só o substantivo,
Que não valho o chão que o porco urina,
Que sou a água suja de uma poça rala,
Que sou o labéu, a nódoa da mentira.
Deus, eu que te neguei por mais do que três vezes,
Que sei dos meus pecados e zelo por eles,
Que gosto da luxúria, da promiscuidade,
Que faço anedotas com a dor alheia.
Deus, é este micro ser que não deveria dirigir-lhe o pensamento,
Que te implora por consolo, que grita em tom de apelo,
Para que me olhes mesmo que de relance,
Para que me escutes mesmo que em nuances,
Para que me concedas o perdão por compaixão a um ser de espírito desnutrido.
Deus, se eu não estiver sendo muito indiscreto,
Peço que as minhas orações passem do teto,
E que haja luz na minha escuridão vil,
E que haja a paz que meu peito jamais viu,
E que ao fim da minha jornada,
Ainda que cego, eu veja a tua glória,
Ainda que mudo, eu cante o teu amor,
Ainda que surdo, eu escute a tua voz,
E ainda que morto, eu tenha a vida eterna.