Diálogo com as sombras
Vê ao longe, camarada.
No limiar das trevas surje, célebre
a radiante luz da alvorada.
Vos enamorais cada dia mais do materialismo
sóbrio, de verniz intelectualizado
de que ouviste falar a vida inteira.
Não é, porém, neste paroxismo
ou na própria matéria rija, como sabeis
que reside pobremente entranhado
o doce fruto da Felicidade Verdadeira.
Seria a regra de ouro de um universo ordeiro
o exaltar da bondade e do amor, malgrado
a tétrica escuridão a consumir o mundo inteiro?
Não há gota sanguínea que repouse esquecida
sob o peso dos infindáveis séculos de poeira.
Vossa alma é como a flor da cerejeira
a despontar no tronco rude da existência
na primorosa e sublime primavera
da sombria e humana experiência.
Teu corpo é como a vela passageira
a sustentar a sublime e belicosa vida física
cêra de carne a ostentar chama tísica
que há de apagar, com o suave deslocar
da fria aragem derradeira.
Assim chegará a termo o breve ofício
de cada homem e mulher terreno.
Se assinalado for, pelo espírito difícil
este breve tempo de carreira
aí vereis mãos pressurosas a socorrer
os nascituros sujos e desgraçados
dos primórdios do morrer
prisioneiros sujos e infelizes
do obscuro féretro enlameado.
Pois a história de riso e cada choro
aparenta se encerrar ao fim do texto
para se iniciar novamente noutro livro
quando ao aflitivo final do tempo sexto
o fardo mental transparecer pesado.
Aí, e só aí, conhecereis e entendereis
o pungente e salutar lamento
do choroso devedor arruinado.