Fragmentos III
Na lama escura do mar, mergulhado
Jazia condenado pobre e feio
Que por descuido do espírito conturbado
Arremessou-se às vagas com pesado esteio.
Não se pode descrever o horror que o consumia
Ao constatar sua carcaça morta, carcomida
Vendo sucumbir sua estranha carne fria
À febre famélica dos peixes e mariscos
Ou sua face tomada por esgares
Tingida de perenes tons violáceos
As sensações mais terríveis, cavalares
Aliadas ao contato dos crustáceos
Atiçando-lhe os pensamentos mais insanos
Pois apesar de se sentir muito vivo, o infeliz
Já se encontrava morto há muitos anos...
Acontece que o pobre coitado
Quando no corpo, vivia endividado
E tanto azar tinha, que vivia azafamado...
Parecia o portador de triste sina!
E é bom lembrar também à letra forte
Que em sua fuga covarde pela morte
Abandonou, incontinênti, uma família:
Uma esposa cansada e uma filha.
A primeira prostituiu-se, morreu vadia
Bêbada e abandonada à própria sorte
Teve a fibra materna destruída
Após o passamento por pneumonia
Da criatura mais doce e querida:
A filhinha muito amada
Luz única a apascentar a agonia
De sua rude e triste vida.
Mas voltemos a citar o desgraçado
Que continuava a imprecar, revoltado
Dotado de loucura doída e rara...
Não sabia, o suicida, d'outros tempos
Quando numa horrenda guerra foi soldado
Quando donzelas e viúvas desonrara
E atuando às raias da indecência
Encoberto por quadrilha ignara
Quanto pôde ainda, surrupiara
Sem escrúpulo algum de consciência
Com sombrios deleites de prazer
Os haveres de infelizes aldeões arruinados
A quem deveria, servil, proteger...
Foi então que usando um peso morto
Amarrado aos magros tornozelos
Atirou-se com presteza ao cais do porto
Com o fim de tornar-se cidadão fugido
Da sombria Terra dos Pés-Juntos.
Era noite alta, e a cidade de Lisboa
Jazia triste, silenciosa e boa
Como o horto fedorento dos defuntos...
E após tanto sofrimento autoinfligido
O infeliz pôs-se a orar, constrangido
Sem saber se fazia certo ou errado.
Mas à medida que orava, o enterrado
O fervor alimentava-lhe a fé, que crescia
E num milagre que há muito não se via
Uma fagulha radiosa e branda surgiu
Dando lugar nas trevas, pouco a pouco
A uma linda silhueta infantil...
E eis que surge, na escuridão condenada
Um anjo-criança, de feição delicada
Que oferece ao covarde a maozinha gentil...
Era aquela que fora a filhinha dedicada
Que, prestimosa, buscava arrancá-lo à solapa
Oferecendo seu perdão num sorriso amoroso
E o recomeço carnal numa futura etapa...