Lembranças de Assis

São tantos anos, caro Francisco

E ainda me recordo com carinho

O cuidado com que tratavas

As plantas e os animais

Os pobres e humildes

Fosse homem ou mulher

Fosse criança ou velhinho

Cada pedra da estrada

Cada flor no caminho

Os aleijados de alma cansada

E os doentes do vaso físico.

Me questiono ainda, Francisco

Como conseguias integrar

Com tua anárquica filosofia

Seres e coisas tão diferentes

O irmão homem e o irmão Sol

As flores e a morte

A atividade pulsante da vida

E as ondas fugidias do mar

Explicando, satisfeito

Com tua simplicidade desconcertante

E com a mesma paciência

Ao sacerdote orgulhoso

E ao faminto ignorante

A moral evangélica de Jesus

O sentido real do ser cristão

Tornando incrivelmente próximas

As distâncias, antes extensas

Entre os seres da Criação.

Eu precisei sofrer, Francisco

Para conseguir algo compreender

Desse teu senso de fraternidade

Essa tua alegria no dever

Exercido com o coração reto

Na areia escaldante

Na neve invernal

Que realiza de modo concreto

O Reino de Deus no coração

Assombrado e sofrido

Dos pobres e indigentes

Do haver material.

Eu não entendia, e pensava

"Como é possível transpirar

Amor com o estômago vazio?

E minhas mãos a calejar

Enfrentando a força do frio

Sem receber nada em troca

Ou moeda alguma lucrar?"

E como não achasse crível

A superação de mim mesmo

Em função da alheia dor

Eu perguntava, abismado

"Onde estão os paramentos e as velas

Que corroboram com clareza

O poder de Nosso Senhor?"

No final pude entender

Que procurava apenas o ouro

Em detrimento do real tesouro

Que tinhas a me oferecer.

Ainda posso ouvir-te cantando

Entre as planícies e os bosques

Que tu chamaste de lar

Inspirando os outros frades

Para as espirituais realidades

E lembrando-nos a todo instante

Que a necessidade atroz

Do nosso próximo

Precisava ser satisfeita

Como se não tivéssemos nós

Nossas próprias necessidades.

Eu não conseguia compreender

De onde vinha tua vontade férrea

Para abandonar os belicosos prazeres

Da guerra e da riqueza

Do vinho e da cerveja

Que satisfaziam os homens da nossa raça.

Não seria mais nobre obedecer

A complexa disciplina térrea

Que nos impunha a Santa Igreja

para a salvação de nossas almas?

Os animais selvagens e domésticos

Mesmo os insetos e as serpentes

Irracionais em sua natureza

Eram magnetizados pela luz

Que irradiava amorosa e pacífica

Do teu espírito sincero.

Sobre as copas das árvores, os passarinhos

Se aninhavam contentes, em algazarra

Pois sentiam a mesma atração pela beleza

E, como nós, a mesma necessidade

De usufruir da tua pureza.

E ao final da existência

Persististe e te mantiveste firme

Mesmo quando os males de uma vida

Totalmente ao próximo investida

Vergastaram teu corpo incessantemente.

E quando teus amigos sinceros se condoíam

Da lepra que te consumia, inclemente

Tu levantavas a destra magra

E dizias, paciente

"É a vontade de Deus, não te preocupes.

Continuemos a trabalhar."

Eu era apenas um homem mesquinho

Sem paciência para ouvir

Sermões e preceitos cósmicos

Sobre a felicidade infantil em servir

Sobre o purificador cadinho

Que burila as criaturas de Deus

Sobre a prática valorosa

Da Caridade universal.

Pois não tinha, para discernir

A necessária estatura mental

Sobre o amor ao próximo que salva

E o trabalho dedicado que edifica

Ou sobre a gerência ascética dos sentidos

Um controle absurdo sobre si mesmo!

Pois eu tinha sede das coisas mundanas

E gostava de seguir a vida a esmo

Sorvendo vossa luz não como o náufrago

Que busca farol amigo na tempestade

Mas como espectador travestido em frade

Que assiste a tolo espetáculo de circo.

Rogo a Deus algum dia, Francisco

Possa eu novamente divisar-te

Vestido com o hábito surrado e imundo

E o teu sorriso nobre e sensível

E os teus cabelos negros tonsurados

Moldura da tua mente impossível

A evitar a glória efêmera do mundo

Pois afinal, foste o crente perfeito

Enviado por Deus para relembrar o povo

A verdadeira simplicidade de Jesus

Trabalhando pelo Amor sem fronteiras

Inundando nosso orbe escuro de luz

E fazendo tremer as bases do Catolicismo

Com a humildade generosa que destruiu

As trevas seculares do materialismo

Derrotando com amor e pacifitude

A soberba e a vaidade

Dos grandes e poderosos da Terra.