Co-existência

Co-habitem em mim uma ilha e eu, num só oceano de tempestades, numa só porção de terra vulcânica transpirante.

Co-existem um a favor do outro, contra o outro, contra si mesmo. Co-dividem a mesma mazela, as mesmas ingentilezas de todos os dias incomuns. Bem verdade que ambos não se suportam, mas ambos não sobreviveriam separados. Vivem à mínguas, mas com resistência esperançosa.

Mas são os dias de sol, que os deixam mais individualistas. Já nos dias de chuva, persistia teimosamente a cruel necessidade de calor. Então, rendesse a exclusiva afirmação humana, a de que ninguém vive só, ninguém resiste só...

Mas a pior afirmação humana é: EU NÃO PRECISO DE VOCÊ!

Numa noite sem vontade própria, velava o sono desta ilha, foi quando fiquei estático, con-ge-la-do em um estouro de palpitações desembestadas, ao ver pousar à minha frente um enorme pássaro negro cristalino, de imensas asas e olhos azuis rubros que brilhavam como olhos felinos no escuro, e em gestos lesmáticos dissem-me: Não apoquentas tua mente, nem tua alma, pois somente sou uma alegoria oceanicamente aquática nesse firmamento constelado de estrelas, pirilampos cintilantes que caíram nas águas deste céu que atravesso em silencio e logo partirei.

E com um suspiro forte e estridente, após algum tempo de conversas e descobertas, partiu num vôo, atirando seu corpo no escuro da noite silenciosa. Enquanto eu fiquei enborboleteado em pensamentos.

E, em tão pouco tempo o sol e os pássaros marinhos vieram brincar com as ondas à beira da praia. Eu, desnudo de favores persistentes que vulcanamente descobriram-me lentamente no desabrochar das pétalas de borboletas azuis.

Mas, como somos indigestos, intragáveis, inconsumíveis e doentes. O ser humano está doente, eternamente numa enfermaria mais doente ainda, e o ser grita na solidão dos seus olhos e agora cai no abismo fantasmagórico sem fundo, e a eternidade é pouco tempo.

E esta ilha é uma única coisa que existe entre eu e eu mesmo, e somente ela é o acolhedor colo dos meus espasmos desadores anestesiado na parede da alma.

Co-habitam em mim um Deus e um Demônio, um barco e um oceano, uma criança e um louco, uma primavera e tempestades.

Hoje esta ilha abasteceu-se de mim, agregou-se em mim, arrebatou-se em mim e salvou-se em mim. Perdidamente espero o despertar do halo azul metálico da noite que se vestiu de despidas roupas floral a dançarem borboleteadas nos braços do vento marinho.

Os abutres criteriosos calcificam as coronárias horizontais do mundo, filtrando, às margens das pedras, singelas borboletas, flores, sonhos e eu mesmo.

Co-habita em mim a coexistência da noite em pleno dia de tempestade, enquanto espero as horas passarem, lentas como o dia.

Do livro “Nau dos Viciados”

Augusto Poeta.

augustopoeta
Enviado por augustopoeta em 30/03/2008
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