meia noite
como de costume
escorei-me contra o poste velho
de madeira antiga e robusta
esperando que ele chegasse
tinha vários pensamentos
agredindo-se e gritando
os insultos mais horríveis
conhecidos ao homem
diante do meu silêncio
e paralisia diante de suas demandas
meu semblante era suave
contemplativo
enganaria os melhores observadores
que o tomariam como expressão
de reflexão
não como esforço
para domar a selvageria
e desmoronamento de minha mente
em minha mão havia um caderno
novo e limpo
pretendia lá deixar um pouco
da sanidade que se encolhia quieta
em meio à todo este turbilhão
de violência e nojo
em minha mente
não demorou muito para que o trem chegasse
com seus vagões feios e enferrujados
cada um deles carregava uma história
alguns haviam sido belos e perderam o brilho
naquela linha
outros haviam vindo de fora e colocado lá
por não possuírem mais serventia
qual seria a tristeza guardada e transportada
em cada um deles?
quantos anos até que não mais fossem capazes
de exercerem suas funções
as pedras tremiam diante da sua força metálica
mesmo moribundos, ainda eram poderosos
elas, em suas simples estruturas desejavam conhecer
mais
sobre o que acima delas transitava
o que sustentavam
por que sustentavam
qual era a utilidade daquela ligação
de vagões de origem desconhecida
muitos indesejados
a maioria defeituosa
saberia o maquinista que tudo aquilo
estava prestes a desmoronar?
saberia ele que as palavras que eu escreveria
determinariam se aquele trem continuaria
sua jornada?
vagões indesejados
vagões preenchidos de desejo
vagões defeituosos
vagões amados
vagões esquecidos
pensamentos amados
pensamentos desnorteados
pensamentos imorais
pensamentos persistentes
vagões de origem desconhecida
pensamentos que não poderiam ser abandonados
vagões com rodas gastas impedindo boa viagem
pensamentos raivosos impedindo boa vida
era hora de finalmente usar o caderno
a ponta do lápis beijou ternamente
a branca e limpa folha de papel
com sua brancura inocente ela foi marcada
destruída
pelos pensamentos lá registrados em negro
não era sua culpa, mas o homem sereno
permaneciam em silêncio há muito tempo
incoerentemente lá palavras finais foram rabiscadas
sem pressa e sem alarde
apenas seus olhos um pouco mais brilhantes
em estado febril de tarefa em construção
lá ele explicaria com toda a raiva interior
beirando a insanidade
sobre as correntes que o amarravam e
o faziam se aproximar de tudo que queima e
destrói
como um cachorro de coleira apertada
sendo conduzido ao veneno
à cólera
e à infelicidade
seus pés não trilhavam o belo caminho
que havia sonhado enquanto ainda era capaz
seus pés agora trilhavam o caminho
pavimentado com as risadas masoquistas
do diabo que possuía sua face
aquela que permanecia por baixo
do semblante sereno
soltando fumaça e de olhos agora desvairados
inconsciente e conscientemente
o trem e o homem presenciavam
a bela tristeza da construção
da total aniquilação