prisão
pacientemente
sentado em uma madeira velha
de pernas faltantes e carcomidas
comecei o lento e tortuoso trabalho
de construir as barras de minha própria
prisão
o céu estava vermelho e os abutres me rodeavam
não havia vento
é como se o tempo houvesse cessado suas atividades
e me olhassem com seu sorriso de escárnio
ciente de que um rato no labirinto
não sabe que sua jornada não possui fim
não sabe mesmo o que e por que é
de cinzel e martelo em mãos
ouvi os barulhos daquilo que
não conseguia enxergar
batendo e criando
fui-me esquecendo das memórias
pelas quais tanto lutei
pelas vitórias que nunca conquistei
e pelos amigos que de mim já não lembram
mais
sozinho e com o alívio da chuva
parei por alguns segundos para apreciar
seus trovões e sua fúria
mas não era bela, era negra
como o sangue em meu coração
afogado em falha e miséria
que teimosamente, assim como meu martelo e cinzel
insistiam em dar forma
a tudo aquilo hediondo
tudo aquilo vítima do escárnio
tudo aquilo que ninguém deseja ver
assim como
as bolas de ferro e suas correntes
que para sempre fariam parte de mim
completando finalmente
o aprisionamento de uma criatura que não sabe
o que e nem por que é
não existe tragicidade em tudo isso
é apenas um testemunho de um profeta
cego e mudo
confuso e tolo
que confundiu fumaça com ouro
brumas com diamantes
e pena com amor
existe um desejo em dizer
que nada deve ser dito
e neste desejo existe uma incapacidade
uma cegueira
inerente à mente
como uma doença ou uma bactéria
que escondida se alimenta sem silêncio
meu cinzel e martelo não podem destruir
a esperança
ela ainda vaga sem saber do que se passa aqui fora
em algum lugar verdejante de minha mente
mas talvez ela já tenha começado a perceber algo errado
talvez comece a ver que seu espaço é pequeno demais
menor a cada dia
distante como o canto de um pardal
ou um abraço amoroso
minha cela está pronta
meus grilhões igualmente
estou pronto para aqui permanecer
em reflexão e em melancolia
em fatiga e ilusão
de que em algum outro lugar
a realidade existe
e não somente me engano com estes enfeites
para que sozinho possa chorar
e justificar minhas lágrimas