companhia

peço que sente ao meu lado

e observe

por alguns instantes

enquanto estes dedos cansados

e estes olhos

cinzas e cegos

se forçam em uma tarefa

tão familiar

executada milhares de vezes

infrutífera e mal feita

esquecida e amada

gostaria que se sentasse ao meu lado

não para observar a perfeição do céu

os sussurros das estrelas

ou carinho do vento

gostaria que se sentasse para observar

a feiura daquilo que não possui sentido

a repetição daquilo que leva à insanidade

e assistir enquanto mais uma vez me perco

na tarefa

de tentar imitar o brilho do sol

o canto dos pássaros e calmaria das montanhas

para isso entretanto preciso de minha ferramenta

e aqui ela já se mostra

disposta e feroz em sua natureza

raivosa e destrutiva

aqui jaz minha fogueira

e peço que sente ao meu lado

enquanto nela jogo

tudo o que amo e odeio

tudo o que possui significado

e diferença alguma faz

tudo aquilo que considero possuir

valor

mas na verdade é uma velha casca de uma memória

morta

são meus antigos amores

minhas amadas memórias

meus incaláveis pensamentos

minhas estúpidas ideias

percebe que nada de fato queima?

percebe que tudo vira uma pilha

cercada de fogo, raiva e cinzas?

percebe como que ao sentar ao meu lado

observa tudo aquilo que jogo entrar no infinito

enquanto o homem ao seu lado

anseia pelo finito e lentamente é carregado

para lá?

percebe a futilidade disso tudo?

percebe a mensagem por trás deste ato

desta fogueira

deste sangue

desta página

desta palavra

percebe o quanto odeio tudo

aquilo que por mim passa

e chama a atenção

de meus olhos cegos

e ouvidos cansados?

percebe minha incompetência?

percebe o quanto este mundo está vazio?

finalmente encontraste onde o nada habita

e o que no nada habita

eu

minha fogueira

meus pensamentos

toda a essência do que insistem de chamar

alma de luz

não existe alma

não existe luz senão

aquela que enxergas na fogueira

à sua frente

se sente cansado da tarefa?

finalmente

eu também

leve consigo meu agradecimento

não posso lhe acompanhar

preciso permanecer no nada

preciso esperar até que algo

que ainda não me é conhecido

venha clamar meu nome

você agora o sabe

leve apenas isso com você

deixe em minha fogueira

tudo aqui vislumbraste

nunca se permita voltar

ao meu vazio

ou criar

seu próprio deserto

são lugares perigosos

cheios de armadilhas

de falso amor

não chore

deixe suas lágrimas na fogueira também

ela está acostumada e pode lhe receber

mas não retorne

nunca

pois se pedi que se sentasse ao meu lado

foi por puro egoísmo

mas saiba que parte com minha gratidão

que mesmo sem significado algum

não deixa de existir

parte também com uma memória

esta peço que logo a abandone

carrega pedaço de meu desastre

e nunca se sabe

quando ele pode clamar

por algum outro nome