A noite
Eis a noite desigual que acolhe o mendigo,
Perverso frio escondido em sua escuridão,
Traz consigo na surdina o medo e o perigo,
Ocultando em sua sombra a devassidão.
A luz pálida sobre a porta de um bordel,
Na sarjeta, o cheiro de urina impregnado,
Um corpo embriagado, jogado, faz do céu,
Teto e da vida miserável seu legado.
Noite cruel, mãe acolhedora dos desvalidos,
Dos incautos e dos poucos alimentados,
Que suplicam, famélicos e combalidos,
As mãos estendidas e corpos maltratados.
Noite dos que sofrem na luz dos hospitais,
Na “sarjeta” de um corredor cheio dos iguais,
Todos filhos de Deus, todos sempre mortais,
Todos regidos pelas leis dos desiguais.
Dos que trabalham no descanso dos senhores,
Pelo maná de alguns, pela fome de tantos;
Perambulantes que do lixo são doutores,
Os ocultos seguem à cata pelos cantos.
Eis a noite fascinante, amiga do poeta,
Ébrio, vomita no papel a solidão,
Construindo os frutos de sua vida abjeta,
Em sua “sarjeta”, adormece sobre a ilusão.