Obra de uma tragédia

Tudo podia ter sido diferente.

Da cor dos cabelos, ao elenco de parentes

Que acenam convidativos para a nova criança que veio ao mundo.

Cada decisão, cada pergunta, cada detalhe

Todos as nuances do intricado entalhe

Que dá vida à moldura que pintaremos mais tarde.

Mas as tintas eram ruins, baratas, de baixa qualidade

O pincel era útil, mas as mãos do pintor tremiam

Seja por raiva, amor, ou ambiguidade

E nenhuma linha que nascia torta se endireitaria

Nas pinceladas futuras que prometiam vir.

Mas o tempo passava, os intervalos aumentavam, o trabalho diminuía

Até o ponto em que cessou por completo.

Por vezes,

Até mesmo substituído por borrachas,

Tintas brancas, rasuras, remendos.

Basta um erro que se acha, e toda a obra se torna defeituosa.

Jogado no lixo, esquecido

Resgatado, batido a poeira, recomeçado

Fazendo o melhor para limpar os erros já pintados,

Mas pouco precavido para evitar a repetição dos mesmos eventos.

As camadas de tinta se aglomeraram a ponto de ganhar relevo

E como uma armadura, protegia a tela branca de pinceladas profundas

Atingindo apenas sua superfície dura, não uniforme, ressecada

Endurecida.

Via nas paredes outros belos quadros

E questionava o porque não ganhou o mesmo capricho.

Mas um dia, o impensável aconteceu

E todas as camadas de tinta seca soltaram-se umas das outras,

E a penúltima, quando enfim chegou sua vez, também caiu

Revelando uma imagem que não existia, que nunca foi pintada

Mas que de alguma forma se revelava para todos:

Um rosto borrado, sem definição,

Que não exibia qualquer outro detalhe

Além de um pincel nas mãos,

E um fundo negro.

Penduraram num corredor vazio, pouco usado

Onde quase ninguém passava

E quando o fazia, era olhando para o chão.

Então, sozinho, sem ninguém perceber

A obra adicionava detalhes por conta própria

Utilizando o pincel que segurava firmemente.

Começou com os olhos rasos, quase fechados

Distinguíveis do escuro apenas com muita luz.

Desenhou lábios fechados, levemente curvados para baixo

E um par de orelhas para ouvir quando se aproximavam.

Nas raras ocasiões em que a olhavam,

Não percebiam as mudanças,

Talvez pelo longo tempo entre uma lembrança e outra.

O fundo negro se tornou cinza, as roupas pretas

Os cabelos longos; ressacas e enxaquecas

Demonstradas pelas sobrancelhas que agora franziam

E pelas linhas de expressão que se amontoavam.

Os fios se encurtaram e se tornaram brancos,

A própria face coberta com muitos destes também.

Mas continuava sozinho, exposto no corredor

Sem a presença de ninguém.

Então, se mudou.

Definiu as partes foscas do próprio rosto,

Pintou um fundo mais bonito, mais atraente

E desenhou para si uma companhia

Já que ninguém mais o faria.

Eventualmente, foi notado

Mas logo quando seria pendurado em um lugar mais visitado,

Recusou-se a largar a parede onde morou por tanto tempo.

Pregou-se no concreto,

Decidiu ficar ali.

Hoje, mesmo que o visitem, mesmo que o aplaudam

Não carece mais ser visto.

Refaz o sorriso assim que saem,

Aproveitando todo o tempo em que é esquecido.

João G F Cirilo
Enviado por João G F Cirilo em 04/03/2024
Reeditado em 04/03/2024
Código do texto: T8012247
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