Ratazana
Não consigo dormir
Pois estou com fome
Enquanto a ardência persistir,
Protestará meu abdômen
Mesmo em meio à sujeira,
Triunfa minha sina de sobreviver
Minha tristeza é verdadeira
Mas cá estou, condenada a viver
Pobre mulher-rato,
Devora tudo o que vê no prato
Em guerra contra a mãe-natureza
E fustigada com a falta de nobreza
Sem coração no peito,
O estômago assume essa árdua função
Víscera oca, a quem não cabe a noção
Não me concede o devido respeito
Ao vencedor, as batatas
E no vencido, sentam as patas
E há quem não resista em dar risada
Sempre que vê uma alma derrotada
Destinada a viver envergonhada
De tudo na vida, sendo enxovalhada
Resta apenas amargar o rancor derradeiro
Ou escondê-lo na escuridão do bueiro
Que triste vida dessa pobre ratazana
A quem a humanidade tanto atazana
Não que essa careça de raticida
Mais do que a humanidade, de pesticida
Meu estômago chora por mim
Já que meus olhos não estão mais a fim
Às baratas, confio toda a minha injúria
Impregnando o poema com minha lamúria
Viver na boca do povo,
É nada mais do que viver no esgoto
Bode-expiatório do alheio desgosto
A cada dia, ferindo-se de novo
Pior do que a escassez,
São as migalhas de afeição
Prefiro manter minha lucidez
Mesmo em completa solidão
Não me considero orgulhosa,
Mas recuso esmolas de piedade
Uma coisa é alma desdenhosa
Outra, é verdadeira amizade
Procurando o amor verdadeiro,
Feito estrelas em um céu nublado
Lá vou eu, mexendo as patas ligeiro,
Na eterna busca por um sonho defasado
Meu reflexo decadente
Seria digno de piada
Se eu conseguisse dar risada
Mas não sou tão doente