Era assim
Era assim que se lidava
Com isso, antigamente:
Escorregar devagar
Entre a morte das palavras,
Não comentar, não sentir,
Não se atrever a existir.
Era assim: sobrevivência
Estandarte da decência,
Um sorriso atravessado
Cobrir o que foi roubado,
E manter, a todo custo,
A aparência da aparência.
Era assim que se escondia
O que era abominável:
Entre as fendas das cortinas,
Por trás da eucaristia,
Dentro da boca entreaberta,
E dos olhares fechados.
Palavra nunca falada,
Histórias jamais contadas,
E as almas remendadas
Cujas costuras tão fracas
Um dia, se arrebentavam.
Era assim que se lidava
Com isso, antigamente:
-Não se atreva, não comente,
Nem tente pedir socorro,
Não nomeie o inominável,
E não dê muita atenção
Àquele "não" calado.
Importava só sorrir,
Sobreviver, não sentir,
Respeitar, dizer amém
Aos pés do Santíssimo Altar,
Para ser abençoado
Pelas mãos do seu algoz
Que, por todos respeitado,
Era a eloquente voz.