AUTOESPELHOGRAFIA
O poeta é um fingidor,
Finge tão completamente
E os que lêem o que escreve,
O poeta é um fingidor,
Finge tão completamente
Que chega a fingir que é dor
A dor que deveras sente
E os que lêem o que escreve,
Na dor lida sentem bem,
Não as duas que ele teve,
Mas só a que eles não têm.
E assim nas calhas de roda
Gira, a entreter a razão,
Esse comboio de corda
Que se chama coração.
F. Pessoa (“Autopsicografia”)
A. dos Anjos (“As cismas do destino”)
“(...)
Porque, para que a Dor perscrutes, fora
Mister que, não como és, em síntese, antes
Fosses, a refletir teus semelhantes,
A própria humanidade sofredora!
A universal complexidade é que Ela
Compreende. E se, por vezes, se divide,
Mesmo ainda assim, seu todo não reside
No quociente isolado da parcela!
(...)”
A. dos Anjos (“As cismas do destino”)
Sou um cristal a luzir
uma poesia emprestada
à musa envenenada
pela dor que eu fingir.
Os que focam-se em meu brilho
sentem um êxtase de cegos;
vêem, na dor que eu reflito,
um cintilar sobre os egos.
É o encanto com um sublime
ciente da sensação
de que as cismas do destino
pedem vidros à razão.