Menino de Carvão

Da árvore das belas flores

Esticado, arranco um ramo

Escondo-o num pano

Envolto em duas cores

Branco, porque o pano era limpo

Preto, porque disse que era.

Por mais sujo que o deixasse o tempo

Ele cheirava a primavera.

Cheirava a manhã de orvalho

Cheirava a zum-zum de abelhas.

Brilhavam os cabelos grisalhos

Das nossas eternas velhas

Que tecem, e tecendo falam

Do porquê de não estarem caladas

É que as velhas bem embalam

Os bebés em contos de fadas.

O que mais queremos é silêncio

Depois dum inverno só de berros

É que a fome também tem disso,

E o Diabo quer mais enterros.

Flocos de fria neve assentes

Na íris dos que ficaram de olho aberto

Mirando o mundo sem ver nada.

O mundo é casa e o céu é teto.

Por isso que a morte nos pesa tanto

Somos anjos com um tiro na asa

E os nossos filhos choram

Quando os pais saem de casa.

Sou um menino de carvão

À força enfiado na terra.

De joelhos escavo o chão

E aguardo a Primavera.

O Inverno não se aquece sozinho

Temos mães por cuidar

E os comboios não marcham

Com um leve sopro de ar

Nem os ricos enriquecem

Se a máquina não for bombando

Nem há pão em cima da mesa

Se não continuar escavando.

Sei que quando vou pras minas

Deixo as unhas lá enterradas

E a carne exposta à terra

Infeções mal tratadas.

Mas por mais que queira chorar

Esforço-me em controlar a mente

Porque sei que carvão molhado

É carvão que não acende.

Quão irónico chega a ser

Que aqueles que de mim precisam

Quando chego a sair da mina

É sobre eles que os meus pés pisam.

Sou um menino de carvão

E fui perdendo o sorriso

Mas sei bem o que é honrar

Os irmãos sobre os quais piso

As irmãs, os pais, os filhos

Os avós e os netos

Que fecharam os seus olhos

E perderam os seus tetos.

Deslocado ao cemitério

Finalmente, choro em paz

Tenho casa e tenho teto

Já não tenho os meus pais

Limpo as lágrimas ao pano

E pouso o ramo na sepultura.

Já não é hábito, nem tradição.

Se há cultivo, há cultura.

Christophorus Columbus
Enviado por Christophorus Columbus em 28/03/2022
Reeditado em 20/12/2022
Código do texto: T7483004
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