Aborto
Ela era comida todos os dias, todas as noites, as eras de sua vida.
Era de sangue, de culpa. De homicida!
Matou o bastardo para recuperar o amor.
Assassinou o filho para segurar o homem.
Se arrepende por um, se compreende por outro.
Mas tornou-se infeliz e tenta contra si própria
Não se reconhece viva, se vê sempre morta
Pela corda, pela lâmina, pela bala.
Ficou tão infeliz na existência
Tão infeliz que se faz suicida.
Se mata sob ritual de lenta tortura
Da memória do filhinho miúdo enterrado no jardim.
Se lembra de todas as tentativas, de todos os amantes,
De todas as fugas alcoolicas que lhe aliviam.
Se livra de si a cada dia,
Tem inveja das mulheres.
Das mulheres recém paridas.
Sente que o amor vale a pena,
Mas a culpa não vale o amor de uma vida.
As mãos embotadas de filho extraído, subtraído, traído
Por quem lhe traria à luz da existência
Rasgam-lhe a face com as unhas purulentas e sujas
Da terra, das pedras, do corpinho de 10 cm que jaz no quintal.
Queria ter tudo e tudo ela tem,
Mas o que lhe aprisiona
É o resto morto de si mesma
Enterrado atrás das hortênsias.