resto de poesia
virar-se do avesso
vasculhar a alma
mergulhar profundamente
nas lembranças mais marcantes,
as mais tristes
aquelas reticências
que mancharam toda
a página em branco
procurar o fio do novelo,
a agulha na palheiro,
o labirinto sorvendo gente
procurar-se por entre palavras,
gestos e vestidos
encaixar-se nos sapatos
fazer doer toda existência
ter todas
bolhas, espinhas, furúnculos
febre, catarro, espirros
apnéia,
dispnéia
fugir do oxigênio óbvio da sobrevivência
e, no escafandro da sala
ver por um vidro
todo o tempo passar
envelhecer,
esvanecer as nuvens
céus menos azuis e
borrados de manhãs
mal raiadas
esse pesado kharma,
esse pecado todo
quanto arrependimento,
quanta culpa ,
e humilhação
tristeza e melancolia
me surram absurdamente
corro para o quarto,
meu resguardo.
meu cais sem porto
onde a balsa dos livros
permanece a arquejar soberba
mares de cadernos e lápis
todos se entreolhavam,
eu mesma apontava para
uma possível escapada
uma fuga imediata
um salitre,ou
uma dose de gim
o copo ainda seco
se recente do cheiro amargo,
as folhas secas das rosas
não marcavam saudades da primavera
mas as feridas do espinho,
mas a decepção do outono
a fruta que não amadureceu,
o filho que não nasceu,
a carta que não remeti.
despedi-me de tudo
subitamente,
do credo secreto
das lamparinas
e se fizeram trevas,
e se fizeram sombras
sobre o aveso e o reverso
sobre o côncavo e o convexo
sobre o absinto e o remédio
um copo dágua,
uma sede infinita
e mil desertos ainda por atravessar
vou vasculhar meus bolsos
alguma força
ainda deverá restar
ou o resto de ontem
servirá de poesia hoje.