Manifesto Antropofágico

Cessem das glórias conhecidas

a história antiga;

pois novas glórias são erguidas

sobre a fadiga.

Cessem também os ideais,

pois novos dias

livres de amarras batismais

e de fobias

mostram as faces nacaradas

a nossas almas,

maviosamente anunciadas

por nossas palmas.

Uma gigante novidade

antropofágica;

nossa novíssima deidade;

uma arte mágica.

Cessem, então, os sentimentos,

as impressões,

as fantasias, os tormentos,

os corações!

Cessem, também, o preconceito,

a fé vulgar;

não há mais mito do Perfeito

em que pensar.

Pois a novíssima verdade

é que devemos

nos devorar sem vanidade!

É o que queremos!

Vejam a força tão selvagem

dos animais.

Jamais lhes faltou a coragem:

são canibais.

Quando uma planta desfalece

e se desfaz,

uma segunda planta cresce

mais tenaz.

Mesmo Jesus, muito sincero,

muito frugal,

pediu, a cada homem austero,

"Sê canibal."

Um escritor tão bem sabia

dessa tendência

que em sua história se comia

com eloquência.

Ele mordia a carne humana,

crocante e impura;

carne novilha e veterana;

crua ou madura;

carne molhada, carne morta,

sangue e fratura,

carne direita, carne torta,

sem compostura.

E quando a carne apodrecia,

comia o azedo:

ele sonhava que comia

outra em segredo.

Tive primeiro certo espanto,

mas já passou:

cessei também aquele pranto

que me assaltou.

Agora entendo que num mundo

tão oprimido,

tão criminoso e tão profundo

por tão ferido

é necessária a insanidade

bem atuada;

é pelo bem da humanidade

a ânsia filmada.

A cada perna, a cada braço

que é mastigado,

um pouco mais me satisfaço

e sou purgado

de minha lágrima invasora

que quer cegar-me e

de minha infância sedutora

que quer castrar-me.

A voz que um dia me dizia

"Tome cuidado!",

hoje me diz com alegria

"Mas que engraçado!";

porque a catarse sofredora

deu seu lugar

a uma luxúria redentora

a gargalhar;

e tudo aquilo que é tabu

é inocente

se o seminu não está nu

abertamente.

Eu já fugi apavorado

de canibais;

e já bradei desesperado

pedindo paz.

Pensava que eram homens maus

e babilônios;

que, se subissem dois degraus,

eram demônios;

mas certo dia, não os vi:

eles chegaram!

E em suas bocas renasci

quando atacaram.

Hoje também sou canibal,

e reconheço:

a nova vida é que é a real;

um recomeço!

Um dia vou comer-me inteiro,

lamber meus ossos;

ser o faminto cozinheiro

de meus destroços...

E nesse dia tão bonito

e tão fatal,

em que meu corpo está comido

e surreal,

o meu espírito será

tão triturado

que nenhum deus o encontrará

penalizado.

Terei sumido finalmente,

como uma brisa

que se acabou; já não se sente

nem agoniza.

Serão findos os sentimentos,

as impressões,

as fantasias, os tormentos,

as orações.

30/06/2020

Malveira Cruz
Enviado por Malveira Cruz em 30/06/2020
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