isolamento
pisco os olhos insones, o peso das pestanas
o sol arde-me à pele, a tarde de mais um dia
penso em tardes como esta, há horas e dias
em que tu estavas ao redor, e eu era alguém
alguém que sentia na epiderme a concretude
do presente inteiro, tempo, espaço, dimensões
bastava uma carícia tua para meu corpo ser corpo
e não um amontoado vivo que de tudo rememora
rememorações, revirar a memória extensa
como quem busca na terra a fonte dos dias e noites
seus significados, distorções e detalhes
deparo-me com reminiscências até então desimportantes
a dourarem como pedra, à luz do pensamento
penso naquilo que tu esqueceras, naquilo que tu lembras
mas que talvez não lembre que lembras, na rotina do dia
percebo as faces das moedas que não contei
preencho onde não estive, extrapolo meus reinos
para além dos teus domínios, pois a mente é Ícaro
queimo-me em meus próprios sóis, armadilhas soltas
soltas, sem rédeas, como o que sinto ao peito
todos os dias, inevitavelmente, no parar das coisas
como quando sento-me à pedra da escada, o sol
o sol a consumir-me inteira, as pestanas, a alma
a ferver os papeis das memórias, destilação forçada
a extrair a essência deste amor puro, enclausurado
no corpo, na escada, no quarto, na rua, no bairro
incapaz de correr a corrida que tantas vezes corri
sobre os paralelepípedos da tua rua
e pisco, os olhos insones, o peso das pestanas
o peso absurdo da insônia nas pestanas
queria apenas parar de pensar, rememorar
guardar teus braços ao meu redor
e retomar o corpo, meu real corpo, aquele que tu trazes
quando acaricia minha carne.