PARA MINHA TIA NALVA
No dia da morte dela,
Tudo virou noite.
E foi logo quando ninguém esperava.
Creio que nem a própria morte, que estava curtindo a virada de ano.
Deus disse:
"Vá".
E foi.
A notícia alastrou qual fogo na mata,
Fazendo as redes sociais serem usadas para expressar,
Ao invés dos kilos de carne e pratos de cores diferentes,
As mensagens sólidas com lágrimas e tons enegrecidos.
Minha mãe se sentou no sofá.
Perto da porta.
Olhando a porta.
Como que esperasse alguém.
Eu dizia:
"Mãe. Sai da porta. Vem pro outro sofá."
Nada.
Choveu.
A Odisséia estava pra começar para um.
Enquanto a viagem Lusíada para outros.
Por mares nunca dantes assinalados,
Mas já cientes da fúria desse mar.
O mar do luto.
Meu irmão foi herói.
Fez o que pôde e muito pôde pra conseguir acionar o seguro.
Eu?
Fiquei com mãe.
Ela chorava a saudade da irmã.
Que partira e não voltaria mais.
Sentada no sofá. Olhando pra porta.
"Quando chega o corpo?
Que horas vai ser?"
Eu respondia:
"Calma, mãe. Sai da porta. Vão dizer."
A noite foi minuciosamente de lembranças.
Cada lágrima representava uma.
Mãe e eu aguardávamos a liberação do corpo.
Velório e local.
"Meus sentimentos"
Dizia um e outro.
Comer?
Apenas o suficiente que a tristeza mastiga.
Mas a tristeza não foi feita pra ser mastigada.
É como água de Coco.
Não é água normal. Mas é água com gostinho amargo.
Só engole.
A noite, choveu mais.
Nenhuma notícia.
O sono pingava fraco,
E o celular adormeceu nas muitas mensagens respondidas.
"Deus tem o controle."
E tem mesmo.
Mas mudou de canal sem nos avisar.
E nos fez assistir uma cena,
Pesada.
A chegada do corpo.
"Leo, me avisa quando chegar."
"Aviso mãe. Vá dormir."
O sono,
Pêndulo mal feito,
Pra lá e pra cá,
Relógio parado acerta duas vezes por dia.
O sono acertou duas vezes.
Alguns minutos.
Mais nada.
Portas fechadas.
Mãe mandava acender a luz.
Voltou pro sofá.
Olhando pra porta.
Seu olhar vazio me trazia a saudade,
Saudade suficiente pra ter dúvidas,
Se era apenas isso que senti a vida toda.
Deita e acorda.
Deita e acorda.
Ligaram-me:
O corpo chegou.
Fomos.
A escuridão pousava fria.
No velório, a vida chorava a falta da completude dos pares.
Faltava um ali.
E aquela falta que motivava o momento,
(Era o pior momento),
Era a razão do desejo de que não faltasse.
As horas voaram baixo.
Muito baixo.
Chuviscou.
O corpo… ali. Sorrindo.
Como se achasse graça da gente.
"Ela fazia tanta coisa boa."
"Lembra que ela sempre te tratou como bebê?"
"Ela adorava quando eu ia visita-la".
"Ela era bruta. Debochada".
Os comentários faziam o "era" parecer que ainda é.
E é mesmo.
Fecharam o caixão.
Levaram o caixão.
Não fui pro enterro.
Dei adeus ali mesmo,
Como um parente que vai na frente,
Porque deixou roupa no varal.
Minha mãe foi.
Choveu.
E eu sentei no sofá.
Perto da porta.
Olhando pra porta.
Esperando…
Esperando…
A chuva se compadecia.
Caiu brilhante,
Como as minhas lágrimas.
Água que desce da nuvem e sobe como vapor.
Vida que vem como sopro e sobe de volta pro Dono da Vida.
Minha mãe chegou.
Conformada.
Com o olhar de quem viu a semente ser plantada.
A semente da resiliência.
Tomou banho.
Trocou de roupa.
Comeu.
Deitou.
E dormiu.
E eu?
Não consegui dormir.
Quis escrever…
O indescritível.
Agora sou eu,
Que estou sentado no sofá perto da porta.
Não tem mais ninguém para esperar.
Apenas... para encontrar um dia.
TE AMO TIA NALVA.